SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nos dois livros, tem fogo. Pessoas são incendiadas vivas, covardemente, por um grupo bárbaro. As narrativas acompanham de perto as principais culpadas -são mulheres. E as cenas ecoam as bestialidades que sempre constituíram, incômodas, a identidade brasileira.
São, também, dois romances apartados de autoras de perfis e talentos distintos. Se Micheliny Verunschk avança sua obsessão literária sobre as violências fundantes do país, Lucrecia Zappi se impregna de curiosidade súbita pela mente criminosa. Mas há, em ambas, uma chama que queima parecido.
“O primeiro ponto é reconhecer que o monstro é principalmente humano. Ele não é nada fora do humano”, afirma Verunschk, autora recifense que ocupa cada vez mais centralidade na literatura brasileira.
Ela decidiu seguir seu romance vencedor do Jabuti, “O Som do Rugido da Onça” -exploração sofisticada sobre as investidas europeias contra as populações indígenas que culminaram no país que conhecemos hoje- com uma trama contemporânea que revolve em torno da violência religiosa.
“Caminhando com os Mortos” começa com o corpo carbonizado de Letinha, filha de Lourença e Ismênio, um casal que se embrenha no fundamentalismo depois de um trauma irreparável e acaba se tornando responsável pela morte da própria filha.
“O que a gente fez não era para matar a menina, não, doutor”, afirma o pai numa declaração à polícia. “Era só pra livrar ela daquela obsessão. Obsessão de perturbar, de desfazer da religião e dos bons costumes. E não era ela. Era um espírito de bruxa.”
Difícil não enxergar a narrativa como um prolongamento dos temas de “Rugido da Onça”, mas Verunschk sublinha que as violências tipicamente brasileiras são o cerne de todo o seu projeto literário. “A sensação que tenho é que estou escrevendo um texto único, e cabe aos leitores dar sentido e fazer essas conexões.”
Já na espinha dorsal de “Degelo”, a ficção mais recente de Lucrecia Zappi -argentina que criou raízes em São Paulo e hoje mora em Nova York- está um outro episódio que assombra o imaginário brasileiro.
A história das meninas adolescentes que, embriagadas, ateiam fogo em um homem indígena que dormia entre papelões na calçada de um bairro abastado acenderá uma lembrança amarga em todo mundo que ouviu falar do caso de Galdino, pataxó que morreu de forma similar em Brasília, há 26 anos.
É algo que recende à mesma pestilência de brutalidade colonial. E, assim como Verunschk, Zappi escolhe contar a história pelo olhar das assassinas, não da vítima, depois de passados muitos anos e cumpridas todas as sentenças prisionais.
A autora aborda a maneira como suas personagens centrais, Ana e Eleonora, compreendem que “vão ter que conviver com isso pelo resto da vida”. Entre as diversas referências que Zappi cita na conversa com o repórter, que vão de Davi Kopenawa a Lévi-Strauss, “Macbeth” aparece aqui e ali -em especial a cena clássica na qual o protagonista é atormentado pelo fantasma de Banquo.
“A culpa é um sentimento essencialmente solitário”, afirma a escritora. Ainda que a trama acompanhe o reencontro tortuoso das duas criminosas nos Estados Unidos, muito depois do episódio que dominou manchetes nacionais, isso pouco mitiga a sensação de que estão isoladas num limbo.
Ana e Eleonora cometem o homicídio numa madrugada turbinada por drogas e carros em alta velocidade na avenida Angélica, reduto nobre de São Paulo -a primeira, ainda adolescente, passa anos detida na Fundação Casa, onde Zappi fez pesquisa para elaborar a obra.
A autora constrói figuras egocêntricas que, segundo ela, só se tornam capazes de exercer a alteridade, ou seja, de refletir sobre vidas alheias à sua bolha imediata, depois de serem responsabilizadas ostensivamente por uma tragédia.
São personagens bem arriscadas de se ter no centro de um romance. “Eu não queria um livro moralizante”, afirma Zappi. “Não me interesso por esse tipo de relato. As pessoas são muitas, todas elas erram, e são essas consequências que busco explorar.”
No caso de Verunschk, as causas e efeitos guardam uma ligação direta com a religião. O crime de “Caminhando com os Mortos” se desdobra da influência de uma igreja evangélica sobre os protagonistas, num momento em que as artes brasileiras têm buscado uma complexidade maior ao abordar uma vertente religiosa cada vez mais popular.
A escritora afirma que procura ressaltar a humanidade de suas personagens acima de qualquer traço chapado de vilania. “A fé das pessoas é algo precioso”, diz. “Não deveria ser moeda de troca para nada.”
“Quando a gente pensa nas barbaridades cometidas em nome do catolicismo, do budismo, das religiões evangélicas, isso nos ajuda a separar o que é de fato manifestação da crença, do sagrado, e o que é tornado commodity.”
Ela mesma diz que não tem religião, lembrando que o baiano Jorge Amado costumava dizer que era “ateu, graças a Deus”. “Todo mundo é ateu até o submarino perder o contato com o navio”, brinca.
Ao mobilizar essas referências, Verunschk lembra como “o medo tem ligação direta com o sagrado”. Elaborando suas personagens, ela deixa vislumbrar como ser temente ao divino tem relação com temer o profundo e inevitável desconhecimento sobre os caminhos -às vezes trágicos- que regem a própria vida. “E o próximo passo do medo é a violência.”
CAMINHANDO COM OS MORTOS
Preço R$ 59,90 (144 págs.); R$ 34,90 (ebook)
Autoria Micheliny Verunschk
Editora Companhia das Letras
DEGELO
Preço R$ 74,90 (256 págs.); R$ 49,90 (ebook)
Autoria Lucrecia Zappi
Editora Todavia
WALTER PORTO / Folhapress