Como Julien Creuzet traduz violência da França colonial com redes e ícones animados

MARTINICA (FRANÇA FOLHAPRESS) – À beira do mar, ao som do rugido das ondas, ele fala em encarnar as palavras. Julien Creuzet, um homem negro de cabelos longos, está em casa. O artista francês, que representa seu país na Bienal de Veneza deste ano, deslocou os holofotes de Paris, onde a França sempre anunciou seu nome da vez na maior mostra de arte contemporânea do planeta, para bem longe, na ilha de Martinica.

Estamos no Caribe, a coroa de um vulcão e capital de um arquipélago de pedregulhos e rochedos que brotam da superfície da água, mas é tudo território francês. É uma abstração difícil de entender, um lugar de travessia e entrecruzamentos, mistura de América, África e Europa, que tem o Palácio do Eliseu no comando.

Creuzet toma essa indistinção geográfica como base de sua obra, trabalho de um nascido em Paris que foi criado na colônia explorada pela metrópole, mais perto do rum do que do vinho.

“Mesmo que a gente mergulhe com intimidade nesta paisagem, há sempre outra paisagem que se desenha se a gente procurar”, ele diz, chamando pelo nome cada formação rochosa no horizonte. “Queria compartilhar um pouco da minha intimidade, que não é nada tão íntima, porque é uma praia e todo mundo pode ir, mas, ao mesmo tempo, é a minha intimidade. Sempre que venho a esta praia, tenho lembranças. Penso que este lugar tem seus segredos, se a gente olhar bem.”

Os tais segredos se traduzem na obra de Creuzet em poemas que ele recita com ar dramático, canções que ele mesmo canta, filmes e animações criados com altíssima tecnologia e instalações que parecem ser o contraponto, coisas ínfimas, frágeis, retalhos e rebarbas que lembram as sobras dos trabalhos do mar, redes de pesca em frangalhos, fiapos de tecido, o expurgo de uma ação violenta, de exploração.

No estranho mundo da arte, tão refém de tendências, pressões do mercado e qualquer mínimo solavanco político que pode abalar os preços nos leilões, Creuzet teve uma ascensão que pode ser chamada de meteórica. Não espanta, não só pela força da obra, mas também pelo poder de sedução plástica de um artista que, de corpo e obra, corresponde aos anseios de instituições ávidas por trabalhos ao mesmo tempo dentro e fora dos cânones.

Creuzet tem consciência plena disso, a ideia de ser o artista do momento que faz o establishment se curvar diante de uma figura que muitos celebram como prodígio, mas que tem lá suas amarras a um projeto político talvez à sua revelia, como o garoto-propaganda de uma França que se entende mais plural, digerindo a dura violência imposta às colônias, sem deixar de ser a metrópole -os diplomatas e políticos de terno, suando em bicas durante as entrevistas coletivas no Caribe, são a imagem perfeita desse complicado deslocamento.

“Tento ser o que tenho de ser, mas, de um jeito ou de outro, sou lembrado o tempo todo de que sou um homem negro”, ele disse, em outra entrevista. “Isso me faz pensar que ainda há muito a ser feito para descolonizar e emancipar o corpo, o conhecimento, a arte.”

Nesse sentido, sua obra é também uma tentativa de estabelecer pontes e tecer laços entre pontos muito díspares. Toda desorientação é cara a Creuzet, que viajou o mundo e fez de suas muitas línguas um arcabouço simbólico. Falamos em francês, mas ele não deixa de jogar na conversa termos em português, inglês, crioulo. O mundo, na visão dele, parece se tornar menor e mais domável quando dominamos certas línguas, as línguas de poder e aquelas da paixão, do dia a dia.

“Tenho a sensação de que todas as línguas estão dentro de nós -o crioulo, o português, o espanhol, o francês”, ele diz. “A poesia resiste e pede para resistir. Ela não tem outro modo de ser formulada. A poesia me acompanha e me abre para outros imaginários. Trabalho nesse tempo da elasticidade.”

Isso é nítido em seus filmes e animações. Se as esculturas e outras obras do artista parecem se dobrar às estratégias da arte contemporânea, um despojamento com cara de acidental que flerta com uma ideia de minimalismo do chamado sul global, destroços exóticos, os filmes se enquadram numa arena estilo Pixar, o famoso estúdio que lançou “Toy Story” e seus derivados.

Neles, Creuzet faz dançar ícones e outras esculturas ancestrais, quebrando o decoro de peças arqueológicas preservadas para a observação póstuma de herdeiros das potências que aniquilaram civilizações. É curioso na tela, talvez engraçado, mas gera um incômodo, o avesso do plástico que se espera de um artista aclamado.

Outra artista, a brasileira Ana Pi, que esteve ao lado de Creuzet na última Bienal de São Paulo, responde pela coreografia das estátuas nos filmes do francês. O movimento é sexy, e a técnica, nem tanto. Ela conta que, para construir os remelexos das estátuas históricas, foi preciso recorrer aos programas de “motion capture” hoje tão comuns nos filmes de super-heróis.

Pi teve o corpo coberto de pequenos pontos luminosos, em conexão com os computadores ao redor, para fazer com que as velhas estátuas chacoalhassem os quadris, um misto de museu antropológico com pista de dança.

E Creuzet parece satisfeito com tudo isso. Tampouco refuta a qualidade de heróis da Marvel do trabalho. “Ultramarino me soa como algo fantástico, um filme hollywoodiano”, diz ele, lembrando como são chamados os territórios além-mar ainda governados pela França, como a Martinica. “Eu nem sabia o que isso significava.”

Em São Paulo, parada anterior à megavitrine que terá em Veneza, na Itália, na semana passada, o artista mostrou que talvez tenha, sim, uma ideia. No parque Ibirapuera, estava seu filme inspirado na figura de Zumbi dos Palmares, levando o quilombo ao centro de um exercício de protesto que para ele vai muito além do abolicionismo brasileiro. Na animação, a figura do escravizado se torna um corpo etéreo, transparente, atravessado pelo fundo do mar.

“Imagine que alguém decida fugir e criar uma cidade. É impossível aqui, porque é preciso fogo para cozinhar e alguém vai ver esse fogo. Se alguém cantar, alguém vai ouvir. Aquilo que no Brasil é um quilombo é quase que mais um movimento aqui. É possível criar um contexto de quilombo, mas, como a ilha é pequena, é preciso se mexer, se mexer, se mexer”, ele diz. “O mar assusta, a profundeza do mar assusta, o escuro assusta. Desde sempre eu trabalho esses imaginários.”

*O jornalista viajou a convite do Institut Français

*SILAS MARTÍ / Folhapress

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