SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No pódio, a regente Maíra Ferreira faz gestos barrocos. Na mesma cadência, o compositor André Mehmari dedilha o cravo e descortina a ópera que compôs. Ele se inspirou no conto homônimo de Machado de Assis publicado em 1878 para criar “O Machete”, que tem sua estreia mundial no Theatro São Pedro, na noite desta quinta-feira. As entradas são gratuitas.
“Se tem uma coisa que não gosto na ópera é o glamour, prefiro sempre arregaçar as mangas e ir ao trabalho”, afirma Mehmari.
Numa cena incomum, maestro e autor dividem espaço no fosso. Parece uma volta ao século 19 quando os compositores apresentavam as suas obras ao público. É, no entanto, a conjuntura que se apresenta à produção do tempo presente. Sob a direção artística de Ricardo Appezzato, o teatro se afirma como um centro de estudos da ópera no país. Ali são encenados títulos menos conhecidos e são formadas as novas gerações de artistas.
Não por acaso, “O Machete” será interpretado por dois elencos da Academia de Ópera e pelos músicos da Orquestra Jovem do Theatro São Pedro. Com direção cênica de Julianna Santos, a montagem espelha o conto, lembrando a história do jovem Inácio Ramos, papel de Wagner Platero e Wilian Manoel, que descobre o talento para a música graças à influência de seu pai, músico interpretado por Ádamo.
Inácio usa o violoncelo para exprimir os estados de sua alma, dedicando boa parte de suas composições à sua mãe, personagem vivida por Marcela Bueno e Maria Thereza. Na rua, porém, Inácio tocava rabeca para ganhar o seu sustento. Ainda na juventude, ele se casa com Carlota, papel de Alessandra Carvalho e Alessandra Wingter.
Na companhia do amigo Barbosa, personagem de Robert William, o casal descobre um terceiro instrumento, o machete. Carlota fica encantada com o som daquela espécie de cavaquinho de cinco cordas e, com Barbosa, passa a insistir que o marido apresentasse suas criações em público. Mas Inácio só tocava em casa, acreditando que a música era a expressão de sua intimidade. Passado algum tempo, Carlota vai embora, levando consigo o machete.
Só então Inácio descobre a beleza do instrumento, alegando que o seu violoncelo era grave demais. Machado usa a música como alegoria da ambivalência entre os registros da cultura popular e erudita, discutindo a estratificação das classes sociais do século 19. “Tive uma catarse quando li o conto, de tão musical que é”, diz Mehmari. “Tenho orgulho de juntar o bel canto ao choro, gênero que tinha um gestual de ópera muito forte.”
Musicalmente, a ópera se assenta em símbolos do barroco. O cravo, por exemplo, imprime aos 27 músicos da orquestra o baixo contínuo, procedimento usado naquele tempo para indicar a harmonia da composição.
Ao mesmo tempo, Mehmari, que acumula 55 discos na carreira, homenageia na partitura a música que brotava das ruas do Rio de Janeiro na época em que carreira literária do escritor ainda estava em ascensão.
Nesse sentido, ouvimos melodias que lembram a época dourada do piano brasileiro, os choros de Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth. Mehmari ressalta a correspondência entre as obras dos compositores populares e o bel canto -técnica do canto lírico que surgiu há dois séculos na Itália. Afinal, era comum os brasileiros estudarem a obra dos operistas europeus. A influência do gênero era tamanha que impactou a própria literatura brasileira.
Sobretudo, a montagem de “O Machete” reaviva a importância da linguagem operística para a composição dos livros de Machado. Sua face de diletante é iluminada no em “Ópera Flutuante: Teatro Lírico, Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado”, tese de doutorado do pesquisador Marcelo Diego defendida na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, que chega às livrarias pela Edusp.
“A ópera era uma fonte literária da qual Machado se alimentava. Ele percebeu que o melodrama tinha presença na sociedade e reproduziu esses esquemas narrativos em seus livros”, afirma Diego. Na comparação entre ópera e literatura, se desvelam as três faces do escritor: o cronista, o contista e o romancista.
No que se refere às crônicas, Diego as eleva como documentos da vida lírica do Segundo Reinado, apesar da ficção se imiscuir, nos textos, ao relato factual. Para o Diário do Rio de Janeiro, Machado retratou, em 1865, o momento em que os teatros líricos sofreram com cortes orçamentários motivados pela Guerra do Paraguai. Em última instância, as crônicas retratam a vida política do país durante o Segundo Reinado.
Noutro diapasão, Machado, diletante que era, exercia a função de crítico nas páginas dos jornais. De início, seus textos eram impressionistas, diz Diego. Mais velho, ele passou a fruir a ópera atentando aos seus aspectos técnicos.
Durante muito tempo, chegou a se acreditar que Machado havia escrito o libreto para “Pipelet: Episódio dos Mistérios de Paris”, encenado em 1859 pela Ópera Nacional -companhia sustentada pela Corte. Tempos depois, se descobriu que Machado apenas traduzira o enredo do escritor francês Eugène Sue.
Nos contos, mormente os denominados musicais, ele vislumbra a música como arte maior para refletir sobre o fazer artístico, tomando distância da literatura. É o caso de “O Machete”, por exemplo. Enfim, a linguagem operística se manifesta nos romances de modo decisivo. O pesquisador identifica semelhanças estruturais entre os dramas do compositor alemão Richard Wagner e a ficção do romancista carioca.
“Ópera Flutuante” afirma que a sucessão de acontecimentos em “Memorial de Aires”, de 1908, ocorre bem ao modo de um libreto de Wagner, isto é, pela alternância de atmosferas. Assim como Wagner, o escritor usa o dispositivo da “inania verba”, seus personagens têm dificuldade para confessar o que os atormenta, prendendo o leitor. Inclusive o Leitmotiv, a reapresentação do mesmo tempo durante a obra, é cara aos dois artistas.
“A maneira como Machado se vale do Leitmotiv pode ser ainda mais radical, porque o mesmo tema é retomado em romances diferentes. É o que ocorre com o ciúme, por exemplo”, conta Diego. Em geral, os triângulos amorosos que habitam o imaginário machadiano também derivam da ópera e seu esquema melodramático.
Em “A Mão e a Luva”, de 1874, Estevão e Jorge disputam a mão de Guiomar, tal como tenor, baixo e barítono se digladiam pela soprano. Acima de tudo, a ópera está em Machado na reincidência do tema do teatro do mundo, o que é sublinhado em “Dom Casmurro”, publicado em 1899.
No capítulo “A Ópera”, o narrador-personagem diz que “a vida é uma ópera e uma grande ópera”, ideia que assumiu a forma de uma comparação em “Ressurreição”, quase vinte anos antes -“a vida é como uma ópera”.
“Dom Casmurro” representa, portanto, um passo além, tanto mais pela centralidade do tema no enredo. Segundo a ideia de teatro do mundo, a humanidade desempenha papéis no palco da vida, do nascimento à morte.
Se tudo é aparência, pensa Bentinho, logo Capitu realmente o estava traindo. A ópera só reforça o seu ciúme. “Bentinho usa isso em favor da sua neurose, sabendo que a vida é tão somente uma representação”, diz Diego.
O MACHETE
Quando De 22/6 a 25/6; qui. a sáb. às 20h; dom. às 17h
Onde Theatro São Pedro – r. Barra Funda, 171 – São Paulo
Preço Grátis
Autoria André Mehmari
Elenco Wagner Platero, Wiliam Manoel, Alessandra Carvalho, Alessandra Wingter, Marcella Bueno e Maria Thereza
Direção Julianna Santos
GUSTAVO ZEITEL / Folhapress