SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando Mariana Enríquez era adolescente, e a ditadura militar já tinha acabado na Argentina, ela flertava com a cena punk e era próxima do líder de uma banda de rock. Como os ensaios dele eram barulhentos, o rapaz era levado à delegacia com frequência. Um dia não voltou mais.
Ele se chamava Miguel, ela conta e abaixa os olhos por alguns segundos. Sua certeza de que o amigo foi assassinado seu corpo jamais apareceu fez com que a escritora sentisse na pele, muito jovem, como os processos autoritários custam a ter um fim.
“Ele se tornou um desaparecido nosso”, afirma. “Às vezes eu não quero escrever sobre a ditadura, mas ela aparece, volta como um fantasma. O terror tem muito de ficção do trauma.”
Se os horrores teimam em emergir de repente, Enríquez dominou o talento de transformar os seus em arte.
A escritora de 50 anos desponta não só como um dos maiores nomes da literatura argentina, mas como vértice de um movimento latino-americano de mulheres que reinventam o gênero do terror.
Aqui, ela é conhecida pelas histórias tenebrosas de “As Coisas que Perdemos no Fogo” e pelos romances “Este É o Mar” e “Nossa Parte de Noite”, todos publicados pela Intrínseca com sólidos 40 mil exemplares vendidos. A editora agora traz “Os Perigos de Fumar na Cama”, sua primeira incursão nos contos, lá de 2009.
Mas prova de que o interesse pela coletânea segue fresco é que sua tradução ao inglês, feita há apenas dois anos, foi finalista do prêmio Booker Internacional. E quem já conhece as entranhas macabras da obra de Enríquez fique seguro de que chafurdará novamente com gosto.
Uma das histórias, “Quando falávamos com os mortos”, funciona como introdução quase didática ao projeto literário da argentina. Um punhado de meninas, todas com parente desaparecido pelos militares, se reúnem num quarto ermo munidas de um tabuleiro de ouija aquele jogo com o copo virado para baixo para se comunicar com seus entes perdidos, quem sabe descobrir onde estão. O resultado é arrepiante.
Lembra uma cena memorável de “Nossa Parte de Noite”, o romance épico de 600 páginas sobre uma família de médiuns habilidosa em rituais sanguinolentos. Quando um grupo de adolescentes entra numa casa mal-assombrada, decorada aos borbotões com dentes, unhas e pálpebras humanas, uma das garotas reluta em escapar porque ali podiam haver pistas de seu pai.
“Nós lemos que os militares usavam casas comuns para torturar”, afirma a jovem, traumatizada. “Quem sabe usavam esta e ninguém sabia. Aqui tem partes de muita gente.”
No conto que abre o novo livro, um bebê reencarnado com vísceras expostas aparece para uma moça no meio de seu quarto, à noite, e a segue pela cidade sem parar, olhando direto para ela em silêncio. Ninguém mais enxerga a criança e a jovem não consegue descobrir o que ela quer recomenda-se não ler antes de dormir.
Ao falar sobre essa história, durante a entrevista por Zoom, Enríquez afirma ter se inspirado nas covas coletivas em que se enterravam crianças mortas por causas nunca diagnosticadas. Ou seja, seu interesse no terror não tem como se apartar do comentário social.
“É um gênero que se aproxima mais emocionalmente da vida que o realismo”, afirma ela. “Li a biografia de Oppenheimer para falar dele no rádio e é terror puro. Uns senhores no deserto secretamente armando uma bomba que pode matar toda a humanidade? Isso é terror. A série Chernobyl, que vem de fatos reais, está toda contada como horror. Aquela chuva de radiação que cai como morte silenciosa.”
Jornalista de formação e carreira, Enríquez não se limita a histórias de assombração sugere a leitura, por exemplo, de sua biografia de Silvina Ocampo, outra referência basilar da literatura argentina, publicada aqui pela Relicário.
Ela escolhe assustar por vontade própria e por faro jornalístico. Segundo Enríquez, o horror não é apenas um gênero popular e respeitável, mas um que toca em sensibilidades particularmente contemporâneas.
“Não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem”, reza o ditado tão disseminado nos países de língua hispânica, onde também se espalha cada vez mais uma literatura afeita ao sobrenatural. Pense na mexicana Mónica Ojeda, na argentina Samanta Schweblin, na boliviana Giovanna Rivero.
Essa proximidade ao obscuro, ao inexplicável, se encontra até nas superstições de insanidade surpreendente que tomaram a Argentina durante a torcida pela última Copa do Mundo, em novembro passado e o tricampeonato, quem diria, acabou vindo.
“Minha tia, que vive na fronteira com o Brasil, quando tem problemas de depressão vai a um psiquiatra e também a um bruxo que usa uma bolsinha cheia de ossos. As duas coisas fazem sentido para ela. Todos os imaginários convivem na América Latina com muita tranquilidade.”
Também impressiona a maneira desembaraçada como Enríquez se aproxima do sexo. Num dos contos, ela incorpora uma mulher com tesão em órgãos com falhas congênitas não os genitais, veja bem, estamos falando de corações e pulmões. Tudo germina da paixão da protagonista por romances típicos do século 19, com pessoas fragilizadas por doenças incuráveis.
Pessoas com esse fetiche em cardiofilia, conta a escritora, você acha até no Tumblr. “Não precisa nem ir tão longe. Só o que faço na história é subir o volume do terror”, se diverte.
Em outra narrativa, ela eleva a potência perturbadora da sexualidade ao acompanhar uma garota assombrada por forças invisíveis que a obrigam a se mutilar e masturbar com violência.
O protagonista é um cineasta amador que seus pais contratam para gravar as aparições um jovem que, pouco antes do serviço, recebe uma bolada de um pedófilo para filmar crianças se divertindo num parque.
Enríquez afirma ter problemas com a cobrança de correção política em obras literárias, que obrigaria os autores a se conformarem com “uma sexualidade sã, entre aspas, que não ofenda, um desejo que não seja perverso”. “Isso não acontece na realidade, e a literatura não é responsável por isso. Na verdade, acredito que tem que ser irresponsável.”
“O escritor não está ali para dizer como as pessoas devem viver. Como autora, me interessa saber o que passa na cabeça de uma pessoa com problemas, porque é uma pessoa. Não creio que possa haver um mundo com gente absolutamente limpa.”
Tanto na realidade quanto na criação artística, negar a existência de qualquer comportamento, por mais rechaçável que seja, é sempre pior. “E negar é perigoso”, acrescenta Enríquez, escolhendo bem as palavras. “É viver uma ficção autoritária.”
OS PERIGOS DE FUMAR NA CAMA
Quando Lançamento em 26/7
Preço R$ 49,90 (144 págs.); R$ 34,90 (ebook)
Autoria Mariana Enríquez
Editora Intrínseca
Tradução Elisa Menezes
WALTER PORTO / Folhapress