SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A arte inventa o nascimento de uma nação. Do campo, surge um país rico, com uma economia pujante e mecanizada. Os filmes agora mostram que o luxo está no chapéu e na bota de grife, e a telenovela aguça o poder de compra do produtor rural. Por isso, a música sertaneja ostenta os tratores de última geração, com preços bem mais caros do que os automóveis dos centros urbanos.
Pioneiros na representação de uma ruralidade moderna, a dupla Léo e Raphael lançou, há três anos, a música “Agro é Top”. Era o início do agronejo, subgênero do sertanejo que exalta as conquistas do agronegócio.
O clipe da música mostra um fazendeiro acordando ao nascer do Sol para iniciar a jornada de trabalho. Em seguida, caminhonetes sujas de lama levantam poeira, desbravando estradas de terra, que delimitam vastas plantações.
Nelas, máquinas gigantes aparecem em movimento, dividindo espaço com rebanhos parrudos. Entre uma cena e outra, os fazendeiros, encarnados pelos dois cantores, são retratados como heróis e provedores do sustento do país.
“Aqui nunca vai faltar nada/ nós planta a cana e a cevada/ agro é top, agro é chique, agro é show, agro é ‘nós’/ quem é fã de churrasco e modão de viola pode acostumar com ‘nós'”, diz a letra. Nas imagens, legendas celebram a pujança econômica do agronegócio. “O brasileiro consome em média 94 quilos de carne por ano” ou “o Brasil é o maior produtor de soja do mundo”.
De natureza comercial, a composição se transformou, ela própria, numa peça publicitária. O tom ufanista de “Agro é Top” é bem diferente do modo como a vida rural era retratada na música caipira de Almir Sater, aquele que andava devagar porque já teve pressa.
“Éramos massacrados pela grande mídia. Muitas pessoas sem informação não sabiam da importância do setor e ficavam falando mal”, diz Raphael.
Aos artistas, o hit serviu como resposta a uma crise de imagem da música sertaneja. Alguns dos principais nomes do gênero, como Gusttavo Lima e Leonardo, apoiaram, nos últimos quatro anos, as pautas do governo de Jair Bolsonaro, do PL, derrotado nas últimas eleições.
O agronejo mostraria, então, o lado positivo da cultura rural, que se alicerça na própria economia agropecuária. A posição política, no entanto, é a mesma. Léo e Raphael afirmam que Bolsonaro deu uma visibilidade maior para o interior do país e criticam o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. “O agronegócio está sofrendo bastante. Piorou muito para o pessoal que trabalha no campo”, diz Raphael.
Há três anos, ele se juntou Everton Albertoni e a Rodolfo Alessi, na época integrante da dupla Fabinho e Rodolfo, para criar a Agroplay Music. Com quase 250 funcionários, a empresa agencia os principais nomes do agronejo Luan Pereira, DJ Chris no Beat, Francisco e Ana Castela, conhecida como A Boiadeira, cantora de 19 anos que se tornou um fenômeno de público.
Em comum aos artistas do agronejo, está a fusão entre a musicalidade do gênero universitário a ritmos urbanos, como o funk e o rap. “Pipoco”, maior sucesso de Ana Castela, lançado no ano passado, é uma parceria com MC Melody e o batidão de DJ Chris no Beat.
O agronejo ostenta a riqueza do campo, tentando conquistar o público das grandes cidades. “Nosso objetivo é conquistar a América Latina, misturando o nosso gênero com os ritmos latinos”, afirma Albertoni. “Será o gênero agrolatino.”
Autor de livros sobre o gênero e apresentador do podcast Universo Sertanejo, o pesquisador André Piunti conta que a opulência dos clipes já não é vista como problema na indústria. Ele lembra as polêmicas do funk ostentação, de MC Guimê, que mostrava joias extravagantes e carros de luxo em seus vídeos.
Nos anos 2010, o comportamento foi visto como um estímulo ao consumismo e até ao crime. “É uma geração influenciada pela rede social, onde todo mundo ostenta seus bens. O agronejo oferece um retrato de um Brasil que sempre existiu. Somos um país de interior”, diz ele. Atualmente, 15,28% da população brasileira isto é, quase 33 milhões de pessoas vive em áreas rurais.
Ao longo do tempo, os artistas do agronejo negaram qualquer patrocínio da cadeia produtiva do agronegócio. O posicionamento, no entanto, mudou. Afinal, os artistas são contratados por feiras e exposições agropecuárias. “Recebemos dinheiro em formato de show. Esses eventos são muito importantes para fomentar o negócio”, diz Raphael.
A recíproca é verdadeira. Com o agronejo, o setor agropecuário criou uma trilha sonora para a efetivação das transações comerciais, que movimentam as feiras e as exposições. Saulo Elson, presidente do Sindicato de Produtores Rurais de Iturama, no interior de Minas Gerais, comemora a contratação de um show da cantora Ana Castela para a 45ª da Exporama, que ocorreu no início deste mês.
“Ela é um furacão. Com essa bota e esse chapéu, esse delírio de ser boiadeira, ela fez com que a imagem dela estivesse muito ligada ao nosso agronegócio”, ele afirma.
O PAÍS EXPORTADOR
É mais uma estratégia do produtor rural para mudar a sua imagem diante da sociedade brasileira, afirma Zander Navarro, coautor dos livros “Novo Mundo Rural”, de 2015, e “O Brasil Rural Contemporâneo: Interpretações”, lançado no ano passado.
A mudança de imagem se iniciou nos anos 1990, quando o termo “agronegócio” passou a ser amplamente adotado pela população. O empresariado se esforçava para se livrar da pecha de latifundiário e explorador de mão de obra.
Historicamente, o interior do país era ignorado pela população urbana. Não por acaso, a arte representava o campo como uma região atrasada e sem acesso à tecnologia. Havia um descompasso entre a realidade e a ficção, visto que, nos anos 1970, a Revolução Verde levou ao interior do país tecnologia de ponta para exportação em larga escala.
Entre os anos 2000 e 2014, a produção de commodities teve um aumento expressivo, e o Brasil absorveu a crescente demanda de soja da China. De acordo com o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, o Cepea, a participação do agronegócio representou, no ano passado, cerca de 20% do Produto Interno Bruto brasileiro.
De acordo com Navarro, a população dos centros urbanos, oriunda de emigrantes do campo, também se viu mais interessada em compreender os mecanismos da economia agropecuária. A onipresença da tecnologia, ele conta, dissolveu as fronteiras entre o campo e a cidade, integrando o país ao contexto globalizado, em que fundos de investimento estão presentes em lavouras do interior do Brasil.
“Mas essa nova representação plantada na indústria cultural não leva em consideração os paradoxos do agronegócio”, diz ele. “Ainda há muitos trabalhadores em condições análogas à escravidão e o aumento da área plantada está criando um problema ambiental gravíssimo. Nos próximos anos, vamos acompanhar a savanização da Amazônia.”
Atenta às novas bases da economia brasileira, a Globo criou, há oito anos, a campanha “Agro é Tech, Agro é Pop, Agro é Tudo”, com inserções publicitárias durante a grade da emissora. Assim, a emissora se aproximava do agronegócio, desmistificando a produção de frango, café, soja ou milho. A novela “Terra e Paixão”, no ar na faixa das nove, representa um passo além na tentativa de representação do mundo rural.
Walcyr Carrasco, o autor, afirma ter escrito uma novela ambientada num espaço ainda pouco conhecido pela população. “A agricultura me fascina. Meu desejo foi justamente mostrar, como pano de fundo, o agro atual do Brasil e tudo o que faz parte desse universo, como o pequeno e o grande produtor, a cooperativa e, claro, toda a tecnologia.”
As transições de cena de “Terra e Paixão” mostram tratores em atividade na lavoura. Ambientada na cidade imaginária de Nova Primavera, no interior de Mato Grosso do Sul, a novela conta a história do fazendeiro Antônio La Selva, papel de Tony Ramos, que tenta incorporar as terras de Aline, interpretada por Bárbara Reis.
Ao menos três aspectos filiam a novela à estética opulenta do agronejo. A mulher de La Selva, Irene, interpretada por Gloria Pires, não prima pela discrição. Na mansão onde vive, usa um colar brilhante no pescoço e prefere se vestir com cores chamativas fúcsia, vermelho, abóbora para mostrar sua riqueza.
Sob o aspecto fotográfico, as plantações da família La Selva ganham uma iluminação dourada. A paisagem brilha como os colares de Irene. Já o personagem de Cauã Reymond, o primogênito de Antônio La Selva, pilota drones que ditam o funcionamento da lavoura.
É uma representação que foge dos estereótipos do campo, reforçados pelas novelas “Rei do Gado”, de 1997, e a primeira versão de “Pantanal”, que foi ao ar sete anos antes. Para Wanderson Tosta, que trabalha na no marketing da Jacto, tradicional fabricante brasileira de máquinas agrícolas, a ostentação da novela dá vazão ao fetiche consumista que tratores, colheitadeiras e pulverizadores têm exercido em segmentos da população.
Ele compara o status social evocado pelas máquinas agrícolas ao significado de ter um carro de luxo. Tosta diz que o design é uma das principais preocupações da Jacto. Afinal, é preciso otimizar o funcionamento das máquinas, atribuindo certa beleza a elas. “Pessoas que nem têm ligação com a produção agrícola demonstram interesse nesses produtos”, diz ele. “Operar uma máquina dessas é uma questão de poder.”
TRATORES, TELAS E TREMORES
Em uma manhã de julho, Gui Pereira abriu um portão preto, que mais parecia a entrada de um dos armazéns da Vila Guilherme, na zona norte paulistana. O interior do prédio era todo descolado, com pôsteres de filmes clássicos do bangue-bangue hollywoodiano e personagens em miniatura do cinema americano.
Nascido em Jaguariúna, no interior de São Paulo, Pereira sempre teve interesse em filmes de faroeste e, há três anos, fundou naquele prédio a sede da Dodô Filmes, produtora que rodou dois filmes sobre a força econômica do agronegócio. O primeiro, “Coração de Cowboy”, lançado há cinco anos, faz parte do catálogo da Netflix.
O filme conta a história de Lucca, um cantor sertanejo interpretado por Gabriel Sater, filho de Almir Sater, que entra em crise existencial. Sua empresária o pressiona para fundir o estilo sertanejo aos novos ritmos urbanos, o que só desagrada o artista, partidário de gêneros mais tradicionais.
Na diluição de fronteiras entre campo e cidade, o movimento feminista é encarnado por Paula, personagem de Thaila Ayala, dona de um bar. Ela é com frequência assediada pelos “agroboys” à sua volta.
“O audiovisual sobre o interior do Brasil se construiu em estereótipos. As pessoas que moram no interior não são caipiras sem modos”, afirma Pereira. “A cultura entre campo e cidade é a mesma. É a cultura da internet.”
Em breve, a Dodô Filmes lança um novo filme com a mesma temática. “Sistema Bruto” vai entrar na programação da TV a cabo. A narrativa acompanha Bruna, papel de Bruna Viola, uma das estrelas do agronejo, e Rosa, interpretada por Bruna Altieri, que frequentam festas sertanejas e decidem participar de uma corrida de caminhonetes.
“Sistema Bruto” tem um elenco de estrelas. Os pais de Bruna são interpretados pelos atores Nelson Freitas e Marisa Orth. Já o tio da personagem é vivido por Jackson Antunes, que já havia atuado em “Coração de Cowboy”.
O filme ainda tem participações do piloto Felipe Massa, do humorista Maurício Meirelles e de Chitãozinho e Xororó. Tudo isso com um detalhe ao contrário de quase todo filme nacional, os dois longas da Dodô Produções não receberam financiamento do governo, afirma Pereira. Ele levantou R$ 1 milhão com ajuda de empresas ligadas à cadeia do agronegócio.
Para “Sistema Bruto”, o valor chegou a R$ 2 milhões, e o filme se transformou num longo merchandising. São vendedoras de lubrificantes para caminhonetes, como a Motul, até a Wrangler, a Prada do mundo rural, que veste os personagens.
Em “Sistema Bruto”, símbolos de quase 40 empresas pululam na tela a todo momento. Pereira afirma que captar dinheiro dos patrocinadores foi bem mais fácil do que conseguir recursos governamentais.
Diz também que tentou inserir os merchandisings em cenas pertinentes ao roteiro, isto é, usar marcas que de fato estão no cotidiano dos fazendeiros. “A gente sabe que nosso filme tem muita marca”, afirma o diretor. “Mas sem elas também não teria filme nenhum.”
GUSTAVO ZEITEL / Folhapress