RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O Aurélio, que está completando meio século, não só virou sinônimo brasileiro de dicionário como carrega o orgulho de ter, nas suas variadas edições, vendido nada menos de 15 milhões de exemplares até o fim do contrato com a editora Nova Fronteira, em 2003. De modo geral, só a Bíblia atinge patamares assim.
No período desde então, porém quase metade da sua vida, o jogo mudou por completo. O parabéns-pra-você entoado na festa dos 50 anos soa meio desenxabido diante da constatação de que os dias de glória passaram.
Não é que o Aurélio, lexicográfica e editorialmente desafiado em 2001 pelo Houaiss, tenha perdido espaço. Todos perderam. O mundo é outro.
Aquele mundo em que começaram a circular os 18 mil exemplares da tiragem inicial do “Novo Dicionário da Língua Portuguesa”, do lexicógrafo alagoano Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, aguardava ansiosamente sua chegada. Notas periódicas na imprensa vinham atiçando expectativas pelo tijolo de 1.536 páginas e 120 mil verbetes. Era março de 1975, início do ano letivo.
A festa de lançamento, na livraria ipanemense Cobra Norato, de Carlos Lacerda (também dono da Nova Fronteira), ficou para quatro meses depois, mas confirmou que o novo dicionário nascia popular. Aurélio era bem relacionado e seus amigos estavam todos lá inclusive os mais avessos a eventos sociais, como o poeta Carlos Drummond de Andrade. O sucesso do livro foi imediato.
Até o fim do século, o dicionário não pararia mais de vender. A relativa simplicidade de suas definições e abonações literárias colhidas mais de autores brasileiros recentes do que de velhos clássicos contribuiu para que ele caísse no gosto do público, que nunca deu ouvidos aos rumores eventuais de falta de rigor lexicográfico que circulavam nos meios especializados.
À parte os méritos do produto, a principal razão para o sucesso excepcional do Aurélio parece se inscrever no arco amplo da história da cultura brasileira.
Em 1975, o país achou que já passava da hora de ter o seu grande dicionário. Hoje isso pode soar estranho, mas há meio século a lexicografia nacional ainda não atingira a maioridade.
A língua não se chamava português? Que se importassem de além-mar nossos dicionários. O Brasil já era independente havia três décadas quando, em 1853, em tom de pedido de desculpas, o lexicógrafo Brás da Costa Rubim lançou o “Vocabulário Brasileiro para Servir de Complemento aos Dicionários da Língua Portuguesa”.
A mentalidade colonizada começou a mudar no início do século 20, mas o processo era lento. Não faltava ambição ao “Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa” (1944), de Laudelino Freire, por exemplo, mas seu estilo era erudito demais. O Aurélio conversava com um novo país um país que tinha mercado de massa e uma população cada vez mais urbana e educada.
Quando morreu, aos 78 anos em 1989, o homem por trás do mais famoso dicionário brasileiro não tinha nenhum motivo para duvidar da perenidade de sua obra. Mesmo a longa disputa judicial com seus antigos colaboradores, tendo à frente o jornalista Joaquim Campelo, estava apenas no início.
Em 2015, o Supremo Tribunal Federal daria a vitória final aos herdeiros de Aurélio, mas vale lembrar a história de sua parceria apaixonada e posteriormente desfeita de modo não menos passional com Campelo, contada em detalhes no livro “Por Trás das Palavras”, de Cezar Motta, lançado em 2020 pela editora Máquina de Livros.
Sem Campelo, intelectual maranhense da geração de José Sarney e Ferreira Gullar, muita gente acredita que nunca teria nascido o dicionário agora cinquentão. Era ele o disciplinado, o estoico, o caxias que, numa empreitada de tanto fôlego, contrabalançava a charmosa inconstância boêmia de Aurélio, com seus bolsos sempre cheios de papeizinhos onde anotava palavras e definições.
Aurélio teve a felicidade de não ver as vendas de dicionários de papel começarem a despencar, há mais de 20 anos. Além do fato de que buscar verbetes numa tela é incomparavelmente mais fácil e rápido, há a vantagem de que um acervo digital pode ser atualizado permanentemente.
Tinha chegado a hora de reinventar os grandes dicionários como produtos. O Oxford e outros passaram a fechar seu conteúdo para assinantes não sem criar sites gratuitos e atraentes com “palavras do dia”, joguinhos e outras curiosidades. O Merriam-Webster e o Cambridge optaram pela gratuidade da consulta ampla de definições, exemplos e etimologia, reservando apenas os recursos mais avançados aos pagantes.
O grupo Positivo, de Curitiba, que detém há 22 anos o passe do dicionário nascido carioca, sempre pareceu mais interessado em disponibilizar o Aurélio aos clientes de seus computadores e sua rede de ensino do que ao público em geral. A empresa não divulga números de vendas.
“Os aplicativos bancários substituem a ida ao banco, os aplicativos de comunicação substituem as ligações telefônicas. A consulta a um verbete, da mesma forma, pode ser realizada em um suporte digital simples e eficaz, em vez de em um dicionário impresso pesado e difícil de ser carregado”, disse Sue Ellen Halmenschlager, editora responsável por dicionários na Positivo, em 2019.
Também pagos, acessos por app e por um plug-in do Google Chrome chamado “Aureliar!”, removido do navegador em 2022 não puderam evitar que, num mundo que adora a gratuidade, o Aurélio fosse encolhendo na paisagem.
Como o Houaiss, que também tem modelo pago, o dicionário número um do mercado brasileiro acabou superado por buscas avulsas no Google ou, nos casos em que é necessário maior rigor, por modelos gratuitos como o do Dicio e o do Aulete. O português Priberam, que também dispensa paywall, foi outro cuja presença cresceu no período.
Seja como for, o prestígio acumulado em sua primeira fase parece suficiente para manter, pelo menos por algum tempo ainda, o substantivo comum “aurélio” como sinônimo de dicionário na língua brasileira das ruas.
SÉRGIO RODRIGUES / Folhapress