SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ao amanhecer nas ruelas do Recife neste sábado, o Galo da Madrugada anuncia as folias de momo com um filho ilustre da capital no seu estandarte maior. Reginaldo Rossi, cantor brega que mais cantou as belezas da cidade nassoviana, é a figura homenageada neste ano pelo maior bloco de Carnaval do mundo.
A coroação do artista é um capítulo importante de um estado que abraçou como nenhum outro o brega brasileiro, a ponto de reinventar tal música à sua própria maneira.
Hoje, o brega é gênero musical pernambucano por excelência. Não que as nações de maracatu e as rasgadas do frevo tenham deixado de representar o estado, nem tampouco que a breguice inexista no norte e no nordeste do país. Acontece que, nas últimas décadas, o brega se enraizou e embrenhou em Pernambuco, de cima a baixo, de lado a lado, mantendo a tradição romântica do cancioneiro nacional ao passo que a renova numa indústria de vária produtoras, casas de show, fãs apaixonados e artistas de peso.
“O brega é sempre uma sofrência, boa ou ruim, e todo mundo sofre no Brasil, mas nosso brega é algo que foi criado nas comunidades daqui”, diz Raphaela Santos.
Junto de Priscila Senna, a cantora forma o carro-chefe do brega pernambucano hoje. As duas lotam shows na região, colaboram com artistas como Anitta e Ludmilla, protagonizam campanhas publicitárias do governo e colecionam números expressivos o clipe de “Quem É o Louco Entre Nós”, de Raphaela, tem quase 60 milhões de visualizações no YouTube, e seu cachê no São João de Caruaru de 2023 foi de R$ 120 mil.
“Ano passado foi minha primeira vez cantando no Carnaval de Olinda”, diz Raphaela, que subiu ao palco quando a cidade estreou sua noite dedicada ao brega. “Esse ano, cantei na abertura do Carnaval do Recife, pela primeira vez também.”
A oficialização do brega contemporâneo na maior festa das cidades é outra prova da importância do gênero no estado, especialmente junto à região metropolitana da capital, em municípios como Paulista e Abreu e Lima, e comunidades menos favorecidas, como o Morro da Conceição.
No topo do monte, ao lado da igreja que lhe dá nome, Raphaela se apresentou em março passado para um público reduzido. Era fim de tarde quando a van da artista estacionou ao lado de um bar onde ela, por quase uma hora, cantou tête-à-tête com uma centena de fãs.
O sistema de som nada parecia com o que se vê em palcos gigantes. A equipe diminuta seu time tem quase 30 pessoas, com direito a fonoaudiólogo poderia confundir: quem seria aquela artista num lugar tão modesto e com fãs tão apaixonados?
Essa proximidade com o público é a força-motriz do brega pernambucano. Ela se traduz em toda a cadeia da indústria e vai das produtoras ávidas em busca de talentos locais até a celeridade na distribuição de novas músicas em plataformas como SuaMúsica e pen drives que tocam em paredões, passando pela gravação de clipes em locais públicos e acessíveis.
“No lançamento do meu EP, fizemos uma gravação gratuita no centro do Recife”, lembra Raphaela. “Todas as músicas são autorais e todas tem mais de um milhão de visualizações no YouTube. Isso mostra que o público consome muito o brega.”
“O brega não é sertanejo, não é forró, e pode até ser parecido com o arrocha. Mas o brega tem baixo, bateria, sintetizador e teclado bem em evidência, e a guitarra tem que ser bem estalada”, diz John Play, produtor de brega e um dos nomes principais da D&D, produtora de brega situada em Paulista, na grande Recife.
Essa amálgama sonora, que na tela do computador se transmuta em uma série de camadas representando diversos instrumentos muitos dos quais puramente virtuais, dá a textura do brega atual.
Outro fator importante é o vozerio. Hoje, as canções de brega fazem uso de longas vogais, marca da música romântica, mas também do gospel. Raphaela Santos, por exemplo, iniciou-se como cantora na igreja. Outra artista de renome do gênero, Eduarda Alves também aprendeu a cantar nos cultos. A “garota do cabelo rosa” é dona de sucessos brega como “Nosso Amor”, versão de “Flowers”, de Miley Cyrus. Essa busca incessante por versões nacionais, elemento típico do forró, também dá a tônica do brega.
“Se tem uma versão brega da música, é porque a música é hit”, conta Eduarda. “E dá uma viralizada mais rápido, como foi a música ‘Necessito’.” Com quase dez milhões de visualizações no YouTube, a composição de Eduarda é uma versão brega de “Despacito”, de Luis Fonsi.
A música latina em espanhol é mais um elemento na fundação do atual brega pernambucano. Esse contato também aponta para a fase anterior do movimento, em 2010, quando bandas como Vício Louco e sua versão da bachata “Obsession” dominavam as ondas sonoras de Recife e região junto do nascente brega funk e seus ares de reggaeton.
No decorrer daquela década, enquanto muitos homens se voltavam à profissão MC, mulheres passaram a ganhar destaque nos conjuntos. O movimento ganhou força com a ascensão de cantoras do sertanejo, caso de Marília Mendonça.
Priscila, Raphaela e Eduarda e muitas outras vem de projetos de grupos musicais. O golpe derradeiro na ascensão das mulheres é quando a perspectiva feminina tomou conta das letras. “Os temas são traição, amores divididos, a volta por cima, o amor-próprio e até vingança”, diz Eduarda. “Mas é sempre o ponto de vista da mulher.”
Homens ainda têm seu espaço no brega pernambucano. O público é sempre diverso, e não raro infantil há diversos vídeos de pequenos cantando as letras de amor como se sofressem de tamanha dor. Nos palcos, nomes como Tocha atualizam a figura masculina no gênero.
“Hoje em dia ninguém faz mais uma serenata, então minhas músicas falam ‘me perdoa, amor’ ou ‘sai da minha vida’, a turma sente e canta como se estivesse vivendo a parada”, diz o cantor que também é MC. Outros, como Conde Só Brega, mantém a verve desmedida de Reginaldo Rossi, enquanto isso.
“Existe uma primeira geração do brega que é ancorada na figura do homem”, explica Thiago Soares, professor da UFPE e autor do livro “Ninguém É Perfeito e a Vida É Assim: A Música Brega em Pernambuco”.
Para o especialista, nesse ponto reside a origem do brega em Recife, num encontro que remonta aos anos 1970 entre as práticas musicais dos interiores caso da seresta maranhense, boleros romanceados locais e a música nova de então.
“É a tradição do homem sofredor, o cara que bebe, e versões locais de ídolos nacionais, como Roberto Carlos. Acho que o Reginaldo Rossi encarna muito bem isso”, afirma Soares.
Para ele, o gênero sobrevive às décadas atravessado por preconceitos. Há, primeiro, um recorte regional. Sem nunca deixar de lado a bandeira pernambucana, Reginaldo Rossi, por exemplo, nunca foi tido como cantor romântico no Brasil, muito embora cantasse de amor assim como Roberto Carlos fazia.
“E existe também uma clivagem de classe”, diz Soares. “O brega é uma música vista como música de pobre. Essa é a leitura das elites.”
Ensanduichado pelo forró e pelo pagode local, o brega resiste aos anos 1990 e chega aos 2000 com fôlego de um novo jogador. “A produtora Luan Produções passa a empresariar a banda Calypso e vê no nordeste um mercado potencial, algo que acredito ser uma homologia ao sucesso do forró eletrônico em Pernambuco”, explica Soares.
“Chimbinha e Joelma se mudam para Recife, e acredito que isso agendou uma série de conjuntos de bandas que passam a mimetizar a banda Calypso, como a banda Kitara e Musa do Calypso, entre outras.”
O gênero cresce nas franjas da capital pernambucana e começa a tomar a paisagem sonora da metrópole na esteira de programas de TV e casas de show que acolhem um público majoritariamente jovem, vindo das periferias.
“O brega se configura com essa importância também por causa da mediatização”, explica Soares. “Na televisão, ele vai se enraizando ao mesmo tempo que reagendando esses artistas mais antigos.”
É nos anos 2010 quando o brega toma conta da capital pernambucana, da Olinda geminada a ela e também dos interiores do estado e para além, como Sergipe e Paraíba. O brega dá origem a novos artistas, como Raphaela Santos, e se moderniza na velocidade dos memes.
É caso da página Brega Bregoso que conta com 2,6 milhões de seguidores no Instagram e captura a estética do jovem fã de brega.
Para Soares, o atual momento do brega também cruza a ascensão do gênero ao maior entendimento da música negra no Brasil. “Essa geração atual traz o debate pós-internet que é a racialização do brega, algo que antes era o debate de classe”, diz o especialista.
“O próprio Reginaldo Rossi não se fala como um homem negro, é algo que não aparece na poética das músicas dele.”
Assim como a presença de cantoras como Raphaela Santos no Carnaval sacramenta o domínio do brega em Pernambuco, a homenagem do Galo prova que Reginaldo Rossi segue ídolo inconteste no estado.
Visto de forma caricata no sudeste, Rossi incorporou o espírito brega, o amor rasgado em suas loas tão apaixonadas quanto as homenagens a sua cidade de encantos mil. É um espírito que hoje se reinventa nas vozes de novos artistas, nas propagandas e programas de auditório de TV, nos memes e nos shows mais cobiçados de Olinda e Recife ou nas radiodifusoras que ecoam nas biroscas e fiteiros de Pernambuco.
FELIPE MAIA / Folhapress