Como o escritor Maurice Sendak exibe medos e tabus através de livros infantis

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Esqueça as crianças boazinhas. Também as famílias perfeitas, as boas maneiras e as lições de moral. Desista dos ensinamentos edificantes, dos mundos cor-de-rosa e das formas engomadinhas. Nos livros infantis de Maurice Sendak, nada é assim.

Aliás, é o contrário. Em “Onde Vivem os Monstros”, por exemplo, o menino Max faz tanta bagunça que acaba de castigo, fica sem jantar e se transforma numa criatura selvagem. Já o garoto Mickey, de “Na Cozinha Noturna”, despenca pelado numa massa gigante de bolo que vai para o forno. Em “Lá Fora, Logo Ali”, a jovem Ida não percebe quando duendes encapuzados sequestram a sua irmã bebê para transformá-la na noiva de um deles.

Essas três histórias formam uma trilogia do premiado escritor e ilustrador americano e, neste início de outubro, chegam juntas às livrarias pela Companhia das Letrinhas.

Embora as sinopses não estejam tão conectadas à primeira vista, é fácil perceber por que elas costumam deixar pais, editores, governantes, bibliotecários e leitores sensíveis do mundo todo de cabelos em pé. Os livros dão medo, falam de tabus, abordam a morte, mexem com o inconsciente e são muitas vezes perturbadores, com crianças incontroláveis, raivosas, ciumentas —ou seja, produzem literatura, não cartilhas didáticas.

“Esses sentimentos existem. Para Maurice, temos que lidar com eles, jamais escondê-los”, afirma a americana Lynn Caponera, presidente da Fundação Maurice Sendak, instituição que cuida da obra do autor desde a sua morte, em 2012.

“Estamos rodeados de coisas bonitas e coisas terríveis. É preciso aceitar ambas.”

Essa é uma das chaves para entender como Sendak vai na contramão dos manuais moralizantes para a infância e por que ele se tornou tão premiado e reconhecido. Gay, filho de imigrantes judeus e com um sentimento perene de estar deslocado do mundo, o artista colecionou diversos troféus, entre eles os dois mais importantes da literatura infantojuvenil: o Hans Christian Andersen, considerado o Nobel para esse público, e o Alma, sigla do Astrid Lindgren Memorial Award.

Mesmo assim, seus títulos muitas vezes não são chamados de infantis. Primeiro porque, tecnicamente, eles são considerados livros ilustrados ou livros-álbum, já que abrem possibilidades de leitura para os adultos e apresentam texto e imagem inseparáveis, que devem ser sempre analisados em conjunto.

Mas estranhezas, esquisitices e ousadias também fizeram com que muitos desejassem afastar as histórias das crianças. Publicados no período que vai de 1963 a 1981, “Onde Vivem os Monstros”, “Na Cozinha Noturna” e “Lá Fora, Logo Ali” foram imediatamente chamados de sombrios e assustadores.

No caso de “Na Cozinha Noturna”, de 1970, acrescente as queixas de conteúdo sexual, pois o protagonista é ilustrado sem roupas e faz derramar o leite contido numa imensa garrafa.

Décadas depois e exatos 60 anos após o lançamento de “Onde Vivem os Monstros”, essas histórias seguem na mira de setores conservadores dos Estados Unidos. E estão muito bem acompanhadas, ao menos em quantidade.

Segundo a PEN America, organização que rastreia a proibição de livros no país, o banimento de obras em escolas públicas americanas cresceu 33% neste ano letivo, se comparado ao período anterior.

Desde 2021, foram registrados cerca de 6.000 casos do tipo, sobretudo com títulos que abordam temas raciais, de gênero, sexualidade e outros assuntos considerados sensíveis.

Algo parecido ocorre no mundo todo. No início deste ano, por exemplo, a editora Puffin Books passou a editar, suprimir e mudar no Reino Unido trechos da obra de Roald Dahl, um dos mais importantes escritores infantojuvenis britânicos, autor de clássicos como “A Fantástica Fábrica de Chocolate” e “Matilda”.

Levantamento do jornal The Telegraph mostrou centenas de alterações nas edições mais recentes, quase todas em trechos e palavras relacionados a peso, saúde mental, violência, gênero e questões raciais, que foram cortados ou reescritos com autorização dos herdeiros.

Caponera diz garantir que o mesmo não vai ocorrer com Sendak.

“Confiamos no que Maurice produziu e jamais mudaríamos seus livros”, afirma. “Temos convicção de que as histórias devem permanecer exatamente como ele escreveu e ilustrou.”

No Brasil, o autor passou quase meio século fora de catálogo e desconhecido de crianças e adultos. Mas os motivos foram outros, mais relacionados à técnica do que ao conteúdo.

“Maurice encarava o livro como uma obra de arte”, conta Caponera. “Ele dizia que crianças merecem o melhor, já que nessa fase surge a paixão pela leitura. Temos que oferecer um objeto lindo para elas.”

Em outras palavras, Sendak exigia padrões rígidos de impressão para as editoras. Nos anos 2000, a Companhia das Letras até teve uma primeira tentativa de publicá-lo. De acordo com a empresa, porém, os requisitos técnicos e a necessidade de usar papéis específicos que não existiam no Brasil naufragaram o projeto.

Só quem conseguiu o investimento necessário foi a extinta Cosac Naify. Após uma negociação que se estendeu por quatro anos, a casa lançou pela primeira vez no país “Onde Vivem os Monstros”, em 2009. Depois, vieram “Na Cozinha Noturna” e “O Aviso Na Porta De Rosie”.

A ideia era editar a obra completa. Até que o fechamento da casa, em 2015, interrompeu os planos e fez com que as edições alcançassem em sebos o status e os valores de obras de arte.

É nesse contexto que, após quase dez anos, a Companhia das Letras relança dois dos títulos já editados pela Cosac e traduzidos pela premiada Heloisa Jahn.

Como a tradutora morreu no ano passado e já havia dividido o trabalho em “Na Cozinha Noturna” com o filho, Antonio de Macedo Soares, ele foi procurado agora para a versão brasileira de “Lá Fora, Logo Ali”, livro inédito no país.

“Tivemos a surpresa de saber que a tradução já estava pronta, feita com a Heloisa”, conta Gabriela Tonelli, editora da Companhia das Letrinhas. “Fizeram para a Cosac, mas não deu tempo de publicar. Ficou guardado até agora.”

Mas, além de provocações, prêmios e traduções de grife, o que significa finalmente ter essas edições disponíveis no país?

Quem responde são dois ilustradores de diferentes gerações. “Conheci a obra de Sendak já depois de adulta, tanto que não tenho os livros dele. Não pude comprar na época da Cosac e, depois, ficaram muito caros”, conta Carol Fernandes, que despontou com títulos como “Cosmonauta” e “Fevereiro”.

Segundo ela, o vácuo gerado pelo americano fez com que muitos artistas brasileiros fossem formados com outras referências. “Acho mais importante a criança ter contato com essas histórias, porque falam de temas e pulsões muito próprias da nossa existência.”

Já Odilon Moraes responde à mesma pergunta com uma linha do tempo. “Sendak está para o livro ilustrado assim como Da Vinci está para a pintura”, define. Nessa comparação, ele tem na ponta da língua quem seria a “Mona Lisa”. “É ‘Onde Vivem os Monstros’, claro. Alguns podem até não achar uma obra extraordinária, mas é um símbolo.”

‘ONDE VIVEM PS MONSTROS’

Com uma diferença. Enquanto Mona Lisa sussurra “decifra-me”, Max e os monstros berram “devoro-te”.

– Preço R$ 64,90 (48 págs.). Lançamento: 3/10

– Autoria Maurice Sendak

– Editora Companhia das Letrinhas

– Tradução Heloisa Jahn

NA COZINHA NOTURNA E LÁ FORA, LOGO ALI

– Preço R$ 69,90 (40 págs.) cada um. Lançamento: 3/1

– Autoria Maurice Sendak

– Editora Companhia das Letrinhas

– Tradução Heloisa Jahn e Antonio de Macedo Soares

BRUNO MOLINERO / Folhapress

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