SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Ça va, patron?”, cumprimenta o violeiro, que diz que toca de tudo: “Frevo, samba, baião, fandango, maracatu, forró, xaxado, carimbó”. É só pedir, ele diz: “Suffit de demander”.
O personagem aparece nas primeiras páginas de “Chumbo”, quadrinho de Matthias Lehmann que sai em agosto na Europa. O violeiro sintetiza a mistura entre francês e português bem brasileiro que vão se cruzar pelas mais de 300 páginas do álbum.
É misturado tal como o autor, um parisiense de mãe brasileira. “Minha mãe fez questão de passar para mim e minhas irmãs a língua, a cultura e o amor por esse país”, Lehmann afirma, por email, em português claríssimo.
O quadrinista também tem um laço com a literatura brasileira: é sobrinho de Roberto Drummond, o jornalista e escritor mineiro autor do sucesso “Hilda Furacão”. E Drummond, por sua vez, virou inspiração para um dos personagens de “Chumbo”.
O quadrinho conta a saga da família Wallace, recortada de 1937 a 2005. O cenário é Belo Horizonte e o interior de Minas Gerais. O ponto focal da trama, como o título indica, é a ditadura militar.
Mas não só. A história da família Wallace se mistura com a história política brasileira no século passado. Começa com o patriarca, Oswaldo, fazendo “anauê!” com a Ação Integralista nos anos 1930. Passa pelo período Vargas e mostra como a família se divide no golpe de 1964 e nos anos realmente de chumbo, até chegar à abertura política e além.
A vida dos filhos de Oswaldo, Ramires e Severino, é o fio condutor da trama. O primeiro se integra ao sistema e convive com políticos, torturadores e a arraia-miúda do regime enquanto tenta tocar os negócios da família. O segundo vira jornalista, convive com a boemia, acaba na guerrilha e nos porões da tortura.
“De certo modo, o livro conta a decadência de uma família burguesa atravessando o século”, conta o autor, “e isso reflete a polarização da sociedade brasileira”.
Lehmann tem 45 anos, 20 de carreira no quadrinho franco-belga e uma pilha considerável de álbuns ganhou quatro prêmios por “La Favorite”, seu trabalho de 2015. Todos são inéditos no Brasil.
A família materna, de raiz brasileira e que ele já visitou diversas vezes, é a inspiração para “Chumbo”. “Mas de forma muito livre”, ele ressalta, em letras maiúsculas. “Os dois protagonistas são inspirados em dois tios meus, assim como são outras personagens, como as irmãs. Mas é um pouco complicado distinguir a verdade do que é inventado. Por isso, antes de tudo, é uma ficção.”
O tio Roberto Drummond, por exemplo, inspirou a trajetória do irmão Severino. “Embora Roberto não tenha sido guerrilheiro, nem torturado etc.”, diz o sobrinho.
Fora as referências de família, o autor mergulhou na história da ditadura. Cita Heloisa Murgel Starling, Elio Gaspari, que é colunista da Folha, (“mas não li todos os volumes [da Coleção Ditadura]”, ele sublinha) e “até os livros do Olímpio Mourão [“Memórias: A Verdade de um Revolucionário”] e Carlos Brilhante Ustra [“A Verdade Sufocada”] para ter o ponto de vista oposto”.
Ele ressalta que não é historiador. “Mas vamos dizer que eu não queria falar besteira demais.”
Foi igualmente importante a pesquisa visual. Além de desenhos que fazem referência a quadros de Tarsila do Amaral, Alberto da Veiga Guignard e Cândido Portinari, um dos pontos mais marcantes de “Chumbo” é o desfile da arquitetura e do design gráfico brasileiros.
Eles estão reproduzidos em fachadas de bares belo-horizontinos, imagens da Rede Globo nos anos 1980, maços de cigarro, propagandas antigas e cartelas de jogo do bicho.
Nesta parte da pesquisa, além de fotos históricas, ele disse que teve a companhia do livro “Linha do Tempo do Design Gráfico no Brasil”, de Chico Homem de Melo e Elaine Ramos.
“O que é importante para mim”, diz o autor, “é que todas essas marcas, logotipos, detalhes diversos, arquitetônicos e mesmo do mobiliário urbano, que todos esses elementos sejam relacionados à idiossincrasia do Brasil o Brasil visto quase como um personagem.”
Entre anúncios de Melhoral e de Guaraná Antarctica, os personagens atravessam as décadas adaptando-se a cada realidade do Brasil.
Severino, o irmão boêmio, quer romper com o status do pai burguês; Ramires, o irmão integrado, passa de burguês à classe média baixa ”mas sempre com essa ilusão boba de que faz parte da classe dominante”, diz Lehmann. “Isso me parece muito específico do Brasil, especialmente se comparar com a França.”
Entre os personagens secundários há Porfírio, recruta da Ação Integralista que vira torturador da ditadura e acaba bicheiro.
“Não é segredo que, no Brasil, criminosos e torturadores tiveram uma vida legal depois do fim da ditadura”, comenta o autor. “Inclusive sem sentir a menor culpa pelo que fizeram pois viveram nessa ilusão de estar sempre do lado certo.”
De outro lado, há personagens que vivem o oposto da decadência da família Wallace. Iara, menina negra que começa doméstica na casa dos protagonistas, vira professora de literatura na Universidade Federal de Minas Gerais. “É a única personagem na história que tem uma evolução social positiva, de certo modo”, diz o autor, “pois sempre viveu na luta”.
Enquanto “Chumbo” sai na França e na Bélgica pela Casterman, a mesma editora de “Tintim”, ainda não há editora anunciada no Brasil. “Paciência”, diz o autor.
ÉRICO ASSIS / Folhapress