Como o sírio Adonis virou lenda viva ao revolucionar a língua árabe com a poesia

WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – Quando era adolescente, o poeta sírio Ali Ahmad Said Esber decidiu mudar de nome. Escolheu o pseudônimo Adonis para assinar os poemas que enviava para revistas literárias. Ele se inspirou no personagem mitológico grego, um amante de Afrodite. Hoje, aos 94 anos, ele próprio é uma espécie de lenda, como um dos maiores intelectuais árabes do século 20.

Refletindo sobre a carreira, Adonis diz nesta entrevista que tudo o que fez foi “abrir uma porta para mudar como pensamos nas palavras”. Mas ele é modesto. Foi um dos protagonistas do verso livre e sem rima em árabe, rompendo com a formalidade dos antecessores. Revolucionou a língua.

Apesar da sua importância no mundo de cultura árabe, Adonis ainda é pouco conhecido no Brasil. Dele havia só um livro em português. Era “Poemas”, que a Companhia das Letras lançou em 2012 com tradução do professor Michel Sleiman, da Universidade de São Paulo. A editora Tabla lança agora um novo trabalho, chamado “Ode à Errância”, vertido também por Sleiman.

Adonis nasceu em 1930 no vilarejo de Al-Qassabin, no oeste da Síria. Começou a carreira há 80 anos, ainda criança. Foi nesse ano que recitou um poema seu para o presidente Shukri al-Quwatli, que visitava a vila. Foi estudar em Damasco e, em 1956, se exilou em Beirute, onde editou diversas revistas literárias influentes.

O poeta se instalou depois em Paris, cidade onde vive até hoje e de onde falou com a reportagem durante uma chamada de vídeo, em árabe.

Foi uma trajetória errante, como a do título do novo livro. Sorveu nesse tempo não apenas a tradição árabe mas também uma cultura mediterrânea mais ampla — daí seu pseudônimo, recuperado da Grécia. São os seus modos de desafiar os limites do tempo e do espaço, no texto.

“Ode à Errância” é de certa maneira uma obra única do mercado brasileiro. Reúne três trabalhos recentes que nunca tinham sido publicados juntos. A ideia da reunião foi do tradutor. Percebeu que existia alguma coisa em comum entre os três poemas longos. São reflexões sobre três diferentes lugares que Adonis conheceu: Jerusalém, México e China.

Não são relatos de viagem. Adonis não aborda sua errância no sentido literal, até porque o périplo mais importante, segundo ele, é o que fazemos para dentro de nós. “O poeta sempre vive como se fosse um viajante, experimentando coisas que não testemunhou”, diz.

O significado dos lugares, além disso, muda com o tempo. Adonis conta que, quando chegou a Paris há algumas décadas, a cidade era como um sonho para ele. Pensava no seu rio, em seus bulevares. Hoje, décadas depois, é com Beirute que sonha. É a cidade de sua juventude e das questões sociais e políticas que o marcaram.

O poema sobre Jerusalém se destaca em “Ode à Errância”. Isso porque esse texto chega ao Brasil em meio à guerra e aos bombardeios israelenses na faixa de Gaza. É um tema já consolidado na obra de Adonis, que há quase um século milita pela questão palestina. Toda a poesia é política, afirma. “Sempre nasce como uma revolução.”

Sua política é explícita em alguns trechos. Por exemplo, quando fala da chegada de colonos judeus e sobre a expulsão de palestinos de Alquds, o nome árabe de Jerusalém. “Sai o morador, ficam os recém-chegados”, escreve. “Como nós podemos aceitar isso?”, ele emenda, na entrevista.

Apesar da centralidade da causa palestina na obra de Adonis, sua maior batalha poética é pela laicidade. Isso, outra vez, aparece na sua escolha de pseudônimo, que ele foi buscar bem longe da tradição árabe-islâmica.

Não é uma crítica à fé individual, mas às religiões organizadas. Adonis fala do islã como um dos entraves para a criação de novas maneiras de pensar no Oriente Médio. “A força do ser humano reside em sua capacidade de fazer perguntas, mas a religião só oferece respostas”, diz.

Daí a violência com que símbolos religiosos aparecem no poema sobre Jerusalém. A respeito da Via Dolorosa, em que segundo o cristianismo Jesus caminhou rumo à cruz e ao sepulcro, diz: “Nada foi criado, nada se cria na Palestina sem partir dessa via/ O túmulo é um sêmen santo”.

A rejeição da religião é também uma afirmação da individualidade. Adonis diz que, no sistema de pensamento islâmico, existe uma ênfase na ideia de comunidade —expressada pelo termo árabe “umma”. É, grosso modo, o privilégio do “nós” em detrimento do “eu”.

“Mas um poema não tem sentido se não expressar a criatividade, o corpo e os desejos do poeta”, diz. “Você e seu irmão podem até ser parecidos, só que não sonham os mesmos sonhos.”

Com tudo isso, o autor afirma que sua ambição é “criar um novo ser humano”, capaz de pensar sozinho, para além das tradições, e de destrinchar sua língua em busca de novas conexões entre as palavras. A poesia que não procura criar algo novo não tem razão de ser, sentencia.

Para explicar isso, Adonis usa imagens poéticas. Ouvi-lo falar é quase como ler sua obra. O poeta não apenas caminha em uma estrada, indo de um tópico a outro, afirma. Ele entende que as palavras estão imersas em um mar e, assim, encostam umas nas outras. “O poeta nada no oceano.”

ODE À ERRÂNCIA

– Preço R$ 77 (272 págs.)

– Autoria Adonis

– Editora Tabla

– Tradução Michel Sleiman

DIOGO BERCITO / Folhapress

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