Como ‘orchestra hit’, efeito do teclado eletrônico, liga Stravinski à música do Brasil

PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Tecladista da banda Parangolé, um dos maiores nomes do pagode baiano, Digo Real diz não ter problemas com o agitado regime de viagens em turnê, especialmente em época de Carnaval e micaretas. Já não é o caso de seu instrumento musical, balançando de lá para cá entre estradas e voos pelo Brasil. “O teclado sofre muito, o tempo inteiro”, diz Real.

Num show recente, o músico subiu ao palco com o teclado e só ali se deu conta que o visor do dispositivo estava danificado e não exibia nenhuma informação. A pequena tela ajuda o tecladista a navegar entre seus vários bancos de som, as múltiplas possibilidades do aparelho que simula digitalmente não só um piano, mas um sem fim de instrumentos e às vezes até uma orquestra inteira.

Era exatamente o som de uma orquestra inteira que Real precisava para a apresentação. Um som que, de tanto usar, o tecladista sabia encontrar em meio a tantos botões mesmo sem o auxílio do visor. Criação do compositor e maestro Igor Stravinski que data do início do século 20, esse som é hoje inseparável do dia a dia de Real e da música popular brasileira. É um som conhecido como “orchestra hit”.

“Ao pé da letra, o ‘orchestra hit’ seria uma orquestra tocando vários instrumentos ao mesmo tempo”, afirma Real. Traduzindo em letras, é o mesmo que um barulho súbito e simultâneo, um estampido impactante em que se destacam o som de instrumentos de corda, como violinos, e cuja onomatopeia mais próxima seria “pam” —como exclamaria alguém que, por brincadeira, queira assustar outra pessoa.

O ‘orchestra hit’ aparece logo antes de Ivete Sangalo cantar em “Macetando”, na metade de “Nosso Quadro”, de Ana Castela, na introdução de “Se Tá Solteira”, de FBC, Vhoor e Mac Julia. Do sertanejo ao piseiro, da seresta ao tecnomelody, o “orchestra hit” é inseparável dos principais hits das rádios e das plataformas de streaming. Entre as dez músicas mais ouvidas do Brasil no ano passado, o “orchestra hit” surge em cinco.

O nome desse som não é de conhecimento do público, mas músicos brasileiros, produtores e tecladistas têm usado essa ferramenta há anos, mudando a paisagem sonora da música popular e até renovando a forma como seus instrumentos são feitos. O “orchestra hit” é como a moldura de um quadro. Sua presença não rouba o protagonismo da pintura, mas sua ausência dá uma sensação de que há algo faltando ali.

“O ‘orchestra hit’ é muito utilizado no pagode porque ele é um gênero muito balançado, cheio de movimentos e danças”, afirma Real. “Quando chega ao refrão, por exemplo, vem aquele ‘pam’, vem uma pausa, e vem o ‘pam’ de novo. A música explode e a gente fala que ferve, quer dizer, que entraram elementos.”

Mesclando percussões e batuques acústicos e digitais, a música baiana moderna ajuda a explicar a história desse som no Brasil. Nos anos 2000, a reboque do sucesso de bandas como É o Tchan, o pagode baiano dá vazão a muitos outros grupos. Ao contrário dos predecessores, conjuntos como Parangolé e Fantasmão passam a usar o teclado com inventividade, abusando de seu destaque ou simulando outros instrumentos.

“É o Tchan, Companhia do Pagode, Terra Samba, enfim, eles usavam o teclado como base, como suporte”, afirma Real. “Mas hoje o teclado é o brilho, tem momento que é o solo, e isso aconteceu a partir de bandas como PagodArt, Saiddy Bamba, New Hit, PlayWay. Hoje em dia, muito raramente você vai escutar pagode baiano sem teclado e sem ‘orchestra hit’.”

Se o teclado baiano ampliou as possibilidades do “orchestra hit” na música brasileira, o hip-hop brasileiro foi pioneiro no uso desse som. A operação em curso nos anos 1980 reproduzia o hip-hop americano, que experimentava com baterias eletrônicas baratas ao passo que as transformava em sua ferramenta de criação por excelência. Entre os vários sons embutidos nesses aparelhos estava o “orchestra hit”.

Não por acaso esse mesmo som é tão presente em projetos atuais que revisitam os primórdios do funk, caso de “Funk Generation”, de Anitta, e “Baile”, disco em que o rapper FBC e o produtor Vhoor resgatam um dos gêneros formadores do funk, o Miami bass —um dos subgêneros do rap.

“Resolvi usar o ‘orchestra hit’ no ‘Baile’ porque é algo bem marcante, tem uma estética”, afirma Vhoor. “Todo mundo lembra, todo mundo usa. É uma ideia que está lá na música ‘Planet Rock’, do Afrika Bambaataa e da Zulu Nation. Na produção, chamamos esse tipo de som de ‘stab’, e eles são usados para criar um impacto.”

O ‘orchestra hit’ perdeu espaço no funk ao fim dos anos 1990 à medida que as baterias eletrônicas foram substituídas por programas de produção musical nos estúdios de DJs e MCs. Ao mesmo tempo, o estampido resistiu nos teclados que se tornaram a norma para músicos populares do país. Artistas que até hoje veem no instrumento uma alternativa barata e acessível não só para compor músicas, mas também para se apresentar.

“Esse som é muito usado por causa da música feita com teclado”, diz Vhoor. “Teclados da marca Roland e Yamaha tem diferentes kits de som, e hoje em dia eles têm arsenais inteiros de som que só se usam no Brasil. Também por conta disso o ‘orchestra hit’ está presente no forró, no sertanejo.”

Transitando no espectro da música brega, que toca o forró e o sertanejo, o último álbum de Pabllo Vittar abusa do “orchestra hit”. Ele aparece, por exemplo, ao fim de “São Amores”, um dos clássicos do forró moderno em que grandes bandas tomaram o protagonismo dos antigos trios.

“Pode ser no funk, no forró, no tecnobrega, seja como for, é um impacto”, afirma Rodrigo Gorky, um dos produtores que assinam o disco. “É quase como aquela vinheta do plantão da Globo, a gente usa quando quer marcar uma parte da música.”

Para o músico, o “orchestra hit” consegue unir saudade e modernidade. “Queremos que as pessoas fiquem nostálgicas, mas com algo que não soe velho”, diz Gorky. “O ‘orchestra hit’ está aí desde os anos 1980 e você pode usar, não vai soar datado. Fazer algo assim é o maior desafio de muitos produtores. Ele dá aquele umami sem que o ouvinte saiba necessariamente o que é aquilo.”

A viagem do “orchestra hit” para o topo da música popular brasileira começa no início do século 20. O trecho é originalmente parte da peça “Pássaro de Fogo”, de 1910, obra exemplar da primeira fase do compositor e maestro Igor Stravinski. “Ele trabalhou muito a questão rítmica, tem muito essa questão de ataques”, afirma Hermes Coelho, professor na Universidade Federal do Amazonas e regente da Orquestra Sinfônica da instituição.

Stravinski foi um dos mais importantes nomes da música do século 20 com uma carreira longa e prolífica. Radicado na França, ele se mudou para os Estados Unidos assim que a Segunda Guerra Mundial estourou. Na América, o artista se deparou com o jazz e seus gêneros fundamentais, como o ragtime, e acentuou a troca entre música de câmara e música popular —ecoando contemporâneos como Villa-Lobos e Debussy.

“Ele tem esse contato com a cultura americana e é algo diferente para ele, tem uma influência africana muito grande ali”, afirma Coelho. “Ele e outros compositores chegam a beber um pouco dessa fonte, fazem esses empréstimos da música popular como que fazendo retratos.”

Quis a roda da música que, décadas depois, o programador e músico David Vorhaus gravasse um desses ataques orquestrados de Stravinsky na memória do Fairlight Computer Musical Instrument. Lançado há 45 anos, esse foi um dos primeiros dispositivos eletrônicos musicais a possibilitar tarefas hoje reproduzidas por teclados —itens comuns nos palcos de forrós, bailes e shows do Brasil

Stravinski morreu em 1971, poucos anos após flertar com vanguardas da música como o serialismo. O que ele diria se soubesse que seu “orchestra hit” é um sucesso no Brasil? “Eu acho que o Stravinski ia ficar muito feliz”, pensa Coelho. “Hoje, acredito que ele usaria todos os recursos possíveis para fazer música, ele ia manipular música no estúdio, acho que ele seria um pop star.”

A memória do compositor segue viva na memória dos teclados que fazem a música popular brasileira. “O teclado é fundamental, e ele sempre vai se renovando”, diz Digo Real, do Parangolé. “Não existe a possibilidade de tirar o teclado da música, não tem como fazer um pagode sem o teclado. O ‘orchestra hit’ eu já tentei substituir, mas não tem como.”

FELIPE MAIA / Folhapress

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