Como os amantes Del Prete e Yente revolucionaram a arte abstrata na Argentina

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – É difícil, para o observador desavisado, diferenciar a autoria entre duas telas abstratas colocadas lado a lado. Ambas são formadas por figuras geométricas contorcidas, em relevo, que variam em tons fechados de azul, amarelo, vermelho e cinza.

Porém, quando olhadas com atenção, é possível identificar diferenças importantes, que acusam a existência de dois artistas. As formas da primeira, ainda que retorcidas, são fiéis aos limites impostos pela geometria -inclusive em seus espaços vazados, visto que, feita em madeira, a obra foi recortada.

Na segunda, é como se pequenos retângulos tivessem sido esticados e enroscados entre si até seus ângulos de tornarem curvos. O resultado, ainda que em relevo, é um volume único -uma estrutura mais vernacular do que concretista.

As semelhanças dão a dica de que, se são dois, os artistas ao menos admiravam o trabalho um do outro ou, quem sabe, se inspiraram mutuamente. Trabalharam juntos? Mais que isso, eram amantes. Casados, compartilharam a vida doméstica por 50 anos, apesar de muito diferentes.

Trata-se de Juan Del Prete e Eugenia Crenovish, conhecida como Yente, artistas argentinos considerados os percursores da arte abstrata no país. Apesar de suas obras serem expostas separadamente ao redor do mundo desde a década de 1930, a exibição conjunta dos trabalhos é inédita. “Vida Venturosa”, mostra organizada do Museu de Arte Latinoamericana de Buenos Aires (Malba) viajou para o Brasil, e está em cartaz no Instituto Tomie Ohtake.

Del Prete, nascido na Itália ainda no século 19, migrou para a Argentina com a família, que abriu uma loja de concerto de sapatos em Buenos Aires. Foi no bairro La Boca, tradicionalmente ligado a comunidade italiana, que morou e se fez artista. Já Yente era argentina, descendente de judeus emigrados da Ucrânia. De família mais abastada, a jovem teve aulas de pintura, piano e estudou filosofia na universidade.

Foi em 1935, após a estadia de Del Prete na efervescente Paris das vanguardas artísticas, que os dois se conheceram e se apaixonaram. A partir daí, não pararam de produzir, de preferência juntos, ainda que cada um sua obra.

Até meados da década de 1950, ambos se dedicaram ao abstracionismo modernista, com trabalhos que projetaram os dois para o circuito nacional e internacional. Yente foi considerada a primeira mulher a fazer arte abstrata na Argentina, e Del Prete realizou a primeira exposição não-figurativa no país, em 1933.

A exposição traz trabalhos dessa época, como “Circo” e “Composición de Materiales”, de Del Prete e “Composición en Relieve”, de Yente. Para a curadora-chefe do Malba, María Amalia García, a mostra questiona o artista enquanto ser genial e de trajetória única, ideia que vem sendo revisada na arte. “O amor, a casa e o cotidiano também fazem parte da arte”, diz.

Apesar da troca intensa entre os dois, Yente preferia não frequentar os grupos de artistas pelos quais Del Prete perambulava, fortemente masculinos -em especial o dos concretistas, com quem o italiano mais se aproximou. “Os grupos concretistas eram muito do manifesto, do programa. Ela não gostava das brigas e discussões, era uma pacifista com Gandhi em sua biblioteca, vegetariana em 1950”, diz García.

Yente, porém, não estava no mundo da lua. Também desenhista, ela produziu alguns livros artísticos, entre eles “Vida Venturosa de Onofrio Terra d’Ombra”, quase uma HQ, em que narra a vida cotidiana de um casal de artistas. A história, recheada de observações sagazes e sutis sobre os estereótipos que podam as mulheres na vida cotidiana, está na mostra.

Mas, além da fase abstrata, a mostra apresenta ao público as obras feitas pelo casal a partir da década de 1960 e até suas respectivas mortes, em 1987 e 1990. Nenhum dos dois se manteve ortodoxo ao abstracionismo, e a experimentação definiu a produção ininterrupta. Não por acaso, críticos associaram a ideia de “gula” à sua atividade voraz.

Del Prete expôs um conjunto de telas próximas ao expressionismo na Bienal de São Paulo, em 1959. Depois, enquanto ele experimentava a colagem a partir de imagens de revistas e jornais, próxima a pop art que estourava na época, e o uso e modificação de objetos como panelas, torradeiras e outros utensílios domésticos para criar esculturas próximas ao “ready-made” de Marcel Duchamp, Yente se dedicou a obras têxteis de formas vernaculares e colagens com materiais cotidianos, como papéis de bala, embalagens e isopor.

Exemplo é “Tapiz”, que se olhado de longe, parece a pintura de um totem. Mas, se observada de perto, é possível notar a costura dos pontos, que parecem imitar pinceladas para criar formas que lembram a arte indígena pré-colombiana.

As poucas obras totalmente figurativas estão no final do circuito. Em sua maioria, são autorretratos, ou retratos que um amante fez do outro, como um em que Del Prete pintou a mulher com a mão no queixo, pensativa.

Para García, a seleção feita pelo Malba pretende também valorizar as obras contemporâneas do casal, visto que o mercado reconhece mais os trabalhos abstratos anteriores a 1960. “A maioria do que está aqui não era exposto desde que foi criado, na década de 1970”, diz. “Essa mostra nos permite abrir a perspectiva para as obras do fim de suas vidas.”

VIDA VENTUROSA

Quando De terça a domingo, das 11h às 19h

Onde Instituto Tomie Ohtake – Rua Coropé, 88, São Paulo

Preço Gratuito

Classificação Livre

ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress

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