SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 1977, Michael Jackson chamou Quincy Jones para tomar café em um intervalo das filmagens de “O Mágico Inesquecível”, adaptação de “O Mágico de Oz” que tinha Diana Ross como Dorothy e “Jacko” como o Espantalho. O cantor pediu a Jones, que fazia a direção musical do filme, a indicação de um produtor para trabalhar com ele em seu próximo álbum solo. “Eu”, ele respondeu.
Começava ali a mais bem-sucedida parceria da história da música pop. Jones produziu então “Off the Wall”, que vendeu 20 milhões de cópias. Depois, os dois se uniram novamente para “Thriller”, o imbatível álbum que alcançou as marcas de vendagem de 65 milhões de cópias físicas e cerca de 100 milhões se incluídos os números de downloads oficiais. Os dois fariam ainda “Bad”, que chegou a 45 milhões de discos vendidos.
Jones morreu em sua casa, em Los Angeles, na noite de domingo (3), aos 91 anos. A causa da morte não foi divulgada. Se os três álbuns com Michael Jackson já seriam suficientes para eternizar Jones na música pop, o que dizer de pelos menos outros 206 discos dos quais participou? Além de 16 álbuns solo e de 24 trilhas para filmes, ele trabalhou com dezenas de artistas como produtor, maestro e, principalmente, arranjador.
Se a indústria musical americana gosta de usar o prêmio Grammy como medida de sucesso, Jones fica na história como o artista que ganhou 28 vezes a láurea, em 80 indicações. Prêmios merecidos para um garoto nascido em Chicago, em 1933, que aos 14 anos foi se apresentar a Ray Charles, apenas dois anos mais velho. Disse ao novo amigo que um dia gostaria de trabalhar com ele.
Jones se mudou para Nova Iorque na década de 1950 e passou a fazer arranjos para as gravações de Ray Charles, que o introduziu a um grupo de amigos e futuros parceiros. Era gente como Count Basie, Gene Krupa, Duke Ellington, Sarah Vaughan, Dinah Washington e outras lendas do jazz.
Ele tocava preferencialmente o trompete, às vezes o piano, mas quem o teve como bandleader diz ser difícil saber se ele tinha dificuldade com algum instrumento. Ele orientava os músicos individualmente, demonstrando ter intimidade com a técnica de todos. Ele aprendeu bastante em turnês com as orquestras de Lionel Hampton e Dizzy Gillespie.
Jones conseguiu gravar seu primeiro álbum como bandleader, “Jazz Abroad”, em 1955. Seguiu sua produção solo gravando mais meia dúzia de discos até 1965. Nas décadas seguintes, lançou álbuns que chegaram ao topo da parada americana de jazz. Para conhecer o melhor de Quincy Jones em seus trabalhos autorais, algumas recomendações: “Smackwater Jack”, de 1971, “Body Heat”, de 1974, “Sounds… and Stuff Like That”, de 1978, e “Back on the Block”, de 1989.
Se Ray Charles foi uma pessoa importante na carreira de Jones, o mesmo pode ser dito de Frank Sinatra. Os dois se aproximaram por um amigo comum, o pianista virtuoso Count Basie, que teve um período de intensa colaboração com Sinatra. Na virada dos anos 1960, Jones foi arranjador e maestro em vários discos do cantor e de seus notórios amigos, como Sammy Davis Jr. e Tony Bennett.
Sinatra aproximou Jones da música pop, além dos limites do jazz, e foi também na década de 1960 que ele começou a ser requisitado por produtores de Hollywood para compor trilhas sonoras. Nas décadas seguintes, lançou poucos álbuns como protagonista, devido à incessante demanda de artistas buscando ser produzidos por ele.
É notório que o modo de trabalhar de Jones dentro do estúdio era incomum. Enquanto outros produtores gostam de provocar alguma mudança no trabalho do artista, como se quisessem imprimir sua digital na música do outro, Jones foi reconhecido por evitar essas intervenções.
Costumava fazer os cantores e músicos repetirem intensamente o que querem gravar, na busca da excelência. Então, aos poucos, começava a sugerir pequenas correções. A diva Sarah Vaughan, que teve quatro discos seguidos produzidos por Jones nos anos 1960, ficou surpresa.
“Esperava alguém que dissesse ‘vamos fazer isso ou aquilo’. Mas Quincy não era esse cara. Começávamos a gravar uma música no início da tarde, e eu achava que estávamos repetindo demais a mesma gravação. Não entendia essa insistência. Mas, à noite, percebia que estávamos terminando de gravar uma canção incrível e totalmente diferente daquela que tínhamos começado a trabalhar algumas horas antes. Não sei como ele fazia aquilo.”
Uma opção para conhecer a vida e a obra de Quincy Jones é um documentário disponível na Netflix chamado “Quincy”. Produzido em 2018, tem direção e roteiro de Allan Hicks e da filha do maestro, Rashida Jones, atriz e produtora de séries de sucesso. Mas talvez seja mais emocionante assistir, na mesma plataforma, o documentário “A Noite que Mudou o Pop”, que registra as gravações da canção “We Are the World”, para o projeto assistencial “USA for Africa”.
Ali, em 1985, ele reuniu numa única noite em estúdio 46 dos maiores nomes da música pop da época, entre eles Michael Jackson, Lionel Richie, Stevie Wonder, Bruce Springsteen e Bob Dylan. Durante toda a madrugada, essas estrelas se esforçaram para atender os desejos de Jones para gravar a canção, escrita por ele, Jackson e Ritchie. É curioso ver estrelas da música se comportarem como alunos tímidos diante do professor Quincy Jones.
Ele esteve muitas vezes no Brasil. Não para shows, mas para ver alguns amigos e até trabalhar com eles, como Ivan Lins, Simone e, principalmente, Milton Nascimento. Os dois se conheceram em 1967, na Califórnia, e ainda mantinham contato pela internet há poucos meses. Mas o músico brasileiro com quem Jones mais trabalhou é seguramente Paulinho da Costa, percussionista que fez carreira nos Estados Unidos. Jones dizia que era bom chamar Paulinho para as gravações porque ele não precisava explicar nada ao amigo. “Paulinho sabe tudo de música”, disse certa vez.
Jones se casou três vezes e teve sete filhos de cinco relacionamentos. Duas filhas são atrizes, Kidada Ann Jones e Rashida Jones. Sua caçula, Kenya, filha da atriz Nastassja Kinski, faz carreira como modelo. Nenhum de seus filhos quis seguir na música. Numa entrevista, ele declarou: “As crianças estão certas. Seria insuportável para eles fazerem música comigo por perto”.
THALES DE MENEZES / Folhapress