SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Racismo e misoginia são temas indissociáveis do romance “A Cor Púrpura”, clássico da literatura americana escrito por Alice Walker e laureado com o prêmio Pulitzer em 1983. Por sua dureza e complexidade, é difícil pensar na história se desdobrando em números musicais suntuosos, coloridos e dançantes.
É por isso que a nova versão cinematográfica do livro, que chega aos cinemas nesta semana, deve enganar uma parcela mais desavisada de espectadores. Se o trailer da adaptação dirigida por Steven Spielberg nos anos 1980 dava uma amostra das violências que a protagonista Celie enfrentava, o desta faz a trama parecer uma fanfarra.
Há carga dramática, claro, mas atenuada por músicas e coreografias que tornam discussões relacionadas a ódio racial, abuso sexual e psicológico, violência doméstica, tortura e homofobia, no mínimo, mais palatáveis.
“Eu sei que muita gente vê A Cor Púrpura como uma história hiper-violenta e sombria, e isso tem a ver com a vida dos negros, ao menos nos Estados Unidos, enquanto uma dicotomia feita de alegria e dor”, disse Blitz Bazawule, rapper e artista plástico ganense que assume a direção, quando esteve no Brasil, em novembro.
“Mas é impraticável mostrar apenas a dor, então precisamos oscilar, como na vida real. Eu também sabia quando a violência era necessária, e de que maneira era necessária para não ser glorificada. O equilíbrio veio de forma natural, até porque decidimos desde o princípio que a música deveria nascer das circunstâncias, deveria servir para aumentar os sentimentos. As canções não podiam cair do céu aleatoriamente, como em outros musicais.”
Assim, as marteladas numa placa de madeira ou o trotar de um cavalo criam o ritmo necessário para um dos personagens irromper em canção, antecipando o público para os sons de orquestra que se avolumam aos poucos. Era necessário cadência, resume Bazawule.
Não que a busca por certo realismo tenha freado as ideias mais mirabolantes do diretor. Numa das canções de amor de “A Cor Púrpura”, a protagonista Celie vai limpando o corpo imerso numa banheira de Shug Avery, cantora sexualmente liberta e dona de si, até que no rodar da câmera o quarto à sua volta se transforma num imenso gramofone.
Ao apelar para certa fantasia, diz Bazawule, foi possível transmitir de forma mais eficiente as emoções dos personagens. E há muitas emoções para mostrar.
“A Cor Púrpura” narra a história de Celie e sua irmã, Nettie, desde a infância numa cidade rural da Geórgia, nos Estados Unidos. Abusada pelo pai, ela é levada por um homem mais velho que quer uma mulher para cuidar dos filhos e da casa.
No novo lar, a protagonista vai amadurecendo, apesar de ser rotineiramente calada pelas agressões físicas e verbais do marido, Mister. Ele, ainda, nega abrigo à irmã e passa a proibir que as duas se comuniquem por cartas. É só quando Shug Avery, antigo amor do valentão, aparece na cidade que ele começa a tratá-la com o mínimo de dignidade.
Em paralelo à jornada da protagonista, “A Cor Púrpura” acompanha ainda personagens submetidos a outros tipos de violência. Harpo é traumatizado pela truculência com que Mister o criou; Sofia fala o que pensa, até ser presa por não aceitar as humilhações de uma mulher branca; Squeak vê seus sonhos de ser artista podados logo na raiz, e até Shug Avery carrega dores de seu lar religioso.
Tudo isso acontece num espaço de cerca de três décadas, entre 1910 e 1940. Ser fiel a elas era outra prioridade de Bazawule, que tomou caminho contrário ao que estamos acostumados a ver em filmes de época, mais sóbrios e cinzentos, inundando seu “A Cor Púrpura” de cores.
“Nós queríamos ir além das fotografias de arquivo, queríamos capturar o brilho do suor na pele das pessoas numa época em que não havia ar condicionado ou ventilador. Essa foi a nossa maneira de aproximar o filme do público, deixando-o vívido. Da mesma forma, a coreografia pega emprestado os passos de dança da época, construindo uma proximidade.”
Mas há precedente na versão mais espetacular de “A Cor Púrpura”. Entre o filme de Spielberg e o de Bazawule, a história foi levada aos palcos da Broadway, onde ficou em cartaz entre 2005 e 2008 e recebeu 11 indicações ao Tony, o maior prêmio do teatro americano. Não demorou muito para inspirar uma nova montagem nova-iorquina, igualmente celebrada, e mais outra, desta vez brasileira, que passou por diversas cidades entre 2019 e 2023.
Não é um caminho incomum o dos filmes que viram musicais nos palcos de Nova York e Londres e, depois, retornam às telas, desta vez acompanhados de música e dança. No mês passado, Regina George e suas meninas malvadas trilharam o mesmo caminho.
Longe da plasticidade daquelas patricinhas, no entanto, “A Cor Púrpura” quer atrair o público agarrado à densidade do livro original e ao melodrama do filme dos anos 1980. Por isso, Bazawule buscou as bênçãos de Walker que chorou de emoção ao acompanhar um dia de gravação e de Spielberg, que lhe disse que a história agora era dele, e que ele deveria fazer o que bem entendesse com ela.
A aprovação veio ainda acompanhada de créditos de produção para a autora e o cineasta, o que ajudou o projeto a ir para frente. Oprah Winfrey, que nos anos 1980 deu vida a Sofia, também entrou como produtora da empreitada.
Na nova versão, o papel ficou com Danielle Brooks, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante pelo trabalho. Já a protagonista Celie, vivida por Whoopi Goldberg, foi para Fantasia Barrino, vencedora do programa de calouros American Idol que já a encarnou nos palcos da Broadway. Completam o elenco da nova versão Taraji P. Henson, Colman Domingo, Corey Hawkins e os cantores Halle Bailey, Jon Batiste e H.E.R.
Os rostos podem até ter mudado, e a adaptação pode até estar distante em quatro décadas da publicação do livro, mas a história continua relevante porque, Bazawule lamenta, a sociedade pouco evoluiu com o passar do tempo.
“Violência de gênero, racismo ou discriminação pela orientação sexual não sumiram, só passaram a operar nas sombras. Eles ainda ditam, sem dúvida, como a nossa sociedade funciona. Esse filme faz uma acusação à nossa sociedade.”
A COR PÚRPURA
Quando Estreia nesta quinta (8), nos cinemas
Classificação 14 anos
Elenco Fantasia Barrino, Taraji P. Henson e Danielle Brooks
Produção EUA, 2023
Direção Blitz Bazawule
LEONARDO SANCHEZ / Folhapress