KYOTO, JAPÃO (FOLHAPRESS) – Ao falar sobre suas criações, Shigeru Miyamoto tem mais perguntas do que respostas. “Como é possível que um japonês consiga criar um personagem global? Isso é algo em que eu penso”, diz o pai de “Super Mario”, durante entrevista coletiva sobre a abertura do Museu da Nintendo, em Kyoto, no mês passado.
Miyamoto é o único funcionário da empresa a aparecer com destaque no local, que conta a história de 135 anos da Nintendo. Com razão. Boa parte dos personagens e produtos expostos no museu foram criados pelo designer de 71 anos, que chegou à casa em 1977 para mudar a história da indústria de games.
Na época, a Nintendo dava os primeiros passos no então incipiente mercado de jogos eletrônicos. No mesmo ano em que Miyamoto foi contratado, a empresa japonesa lançou sua série de consoles Color TV-Game, que vinham com uma quantidade pré-definida de jogos –inicialmente, apenas variações de “Pong”.
Como membro do departamento de planejamento, o primeiro projeto de Miyamoto, então recém-formado em design industrial, foi no Color TV-Game Racing 112, que tinha jogos de corrida como novidade.
Essa não era exatamente a carreira que Miyamoto desejava. Ainda assim, ele encontrou nos videogames um espaço para realizar seus sonhos. “Eu sempre quis ser um artista de mangá, desde o ensino médio. Por acaso, eu me deparei com este meio chamado videogame, onde posso mostrar os personagens que eu queria criar. E é isso que tenho feito.”
Apesar de ter criado dezenas de personagens célebres, nenhum alcançou tanto sucesso como Mario. O encanador bigodudo, capaz de disputar com Mickey Mouse o posto de personagem mais famoso do mundo, é a principal mascote da Nintendo, marca que é sinônimo de videogame em muitos países.
Ainda assim, o personagem nasceu de forma aparentemente despretensiosa. Designado pela Nintendo para repaginar máquinas de fliperama com jogos que não fizeram sucesso nos Estados Unidos, Miyamoto criou em 1981 “Donkey Kong”. No game, inspirado em King Kong, um macaco gigante sequestra a namorada de um simples carpinteiro, que precisa desviar dos barris atirados pelo gorila para salvá-la.
Inicialmente chamado apenas de Jumpman, o herói do jogo ganhou o apelido de Mario pela sua semelhança com o dono do galpão em que a Nintendo funcionava nos Estados Unidos. Com o sucesso do título, o nome acabou pegando.
Três anos depois, Mario ganhou o primeiro jogo com seu nome. Também desenvolvido para fliperamas, “Mario Bros.” era disputado em um subterrâneo com canos verdes. Daí surgiu a ideia de mudar sua profissão para encanador.
A revolução viria com “Super Mario Bros.”. Lançado em 1987 para o Nintendo Entertainment System -o NES, ou Nintendinho no Brasil-, o game invadiu a casa dos consumidores e é considerado um dos títulos mais influentes da história, responsável pela popularização do gênero plataforma -em que o jogador precisa ir da esquerda para a direita superando uma série de inimigos e obstáculos.
Miyamoto conta que a ideia ao criar Mario era desenvolver um personagem principal com o qual qualquer pessoa pudesse se identificar. Por isso era importante que ele não começasse a aventura com poderes especiais e suas ações fossem as mais simples possíveis -correr, agachar e saltar. Ao agregar a isso à identidade de um trabalhador braçal, o personagem ganhou ares de herói popular, talvez o primeiro desse universo.
Apesar de não se ver refletido nos personagens, o estilo “cidadão comum” de Mario casa com a postura de Miyamoto. Ele tenta manter uma vida simples, fugindo dos holofotes e protegendo sua privacidade. Raramente dá entrevistas ou faz aparições públicas, até mesmo no Japão, e costuma atribuir a reclusão à sua timidez.
Miyamoto trabalhou a vida toda para a Nintendo e não se tem notícia de ter em algum momento cogitado deixar a empresa, seja para começar um negócio próprio ou para trabalhar em uma casa rival.
Prefere falar com os fãs através dos seus jogos. “Quando estamos desenvolvendo videogames, fazemos alguns testes monitorados, em que trazemos pessoas de fora para testar o jogo. Quando fazemos isso, eu me certifico de não participar”, afirma.
“Apenas observo a distância, porque se eu participasse, eu iria querer dizer: ‘Ah, não, é assim que você faz’. Ou ‘você não está se divertindo?’. Porém, no final das contas, quando o consumidor compra o produto, eu não posso ir para casa com eles. A única conexão é através do jogo.”
Essa filosofia, aplicada até hoje pela Nintendo, foi definitiva para o sucesso de “Super Mario Bros.” num momento de virada da indústria.
Quando a maioria dos games era desenvolvida para os fliperamas, eles eram intencionalmente programados para serem difíceis -quanto mais desafiador fosse o jogo, mais fichas seriam gastas para terminá-lo.
Mas com a chegada dos consoles caseiros isso já não fazia sentido, e os desenvolvedores precisaram reaprender a calibrar a dificuldade para não frustras o jogador. Ninguém conseguiu se adaptar mais rapidamente que Miyamoto.
A primeira fase de “Super Mario Bros.” é referência universal de como ensinar os fundamentos de um game de forma natural, sem atrapalhar a diversão com textos explicativos.
Os obstáculos são posicionados de maneira que a dificuldade cresça gradualmente. Com isso, o jogador sempre saberá como superar os desafios e, quando falhar, não culpará o jogo por ter sido pego desprevenido ou ficará perdido sobre como seguir em frente.
Em 2010, à revista The New Yorker, Miyamoto comparou a dificuldade de criar um jogo de videogame à de escrever um livro de mistério pela necessidade de equilibrar a quantidade de informações que serão dadas ao jogador.
“A diferença com os videogames é que, ao contrário de filmes ou romances, onde os autores podem conduzir o público até o final, são os jogadores que precisam encontrar seu próprio caminho.”
Se fosse só por Mario, Miyamoto já teria lugar de destaque na história da indústria de games. Mas ele fez muito mais. A série “The Legend of Zelda”, inspirada em suas aventuras pelos bosques nos arredores da vila de Sonobe, onde cresceu -a cerca de 50 km da sede da Nintendo, em Kyoto-, é um embrião dos grandes jogos de mundo aberto da atualidade, como as séries “GTA” e “Assassin’s Creed”.
Além dos jogos de plataforma e aventura, Miyamoto também criou franquias em gêneros como ação em naves (“Star Fox”), estratégia (“Pikmin”) e corrida (“F-Zero”), mostrando uma versatilidade pouco comum entre grandes desenvolvedores.
Sua colaboração para o desenvolvimento do Nintendo Wii -com mais de 100 milhões de unidades vendidas, hoje atrás do Nintendo Switch, que deveganhar um sucessor em 2025-, ajudou os videogames a estourar a bolha “gamer” e mostrar que essa forma de entretenimento é para todas as idades. O console também ajudou a popularizar os controles por movimento, hoje utilizados em equipamentos de realidade virtual.
Hoje afastado de funções diretamente relacionadas ao desenvolvimento de jogos, Miyamoto segue buscando novos públicos. Sem planos de se aposentar, ele é peça importante na estratégia da Nintendo de expandir suas marcas para setores como cinema, televisão e parques temáticos.
Seu principal mérito, porém, não é palpável. Ele está na capacidade de, ao longo dos seus 47 anos de carreira –e contando–, ter maravilhado e influenciado gerações de jogadores e desenvolvedores, tanto na Nintendo quanto fora dela. Um tempo que passou rápido demais aos olhos de Miyamoto.
“É surpreendente para mim saber que todos esses personagens no museu já têm mais de 20 anos de legado e história”, afirma o designer. “É algo que me faz refletir.”
TIAGO RIBAS / Folhapress