LOS ANGELES, EUA (FOLHAPRESS) – Enquanto “Barbie” e “Oppenheimer” disputavam as atenções e as bilheterias nos cinemas americanos, um filme de US$ 15 milhões aproveitou o fim de semana para chegar ao terceiro lugar dos mais vistos no país e acumular impressionantes US$ 124 milhões para um pequeno estúdio especializado em projetos religiosos.
Mas por que “Sound of Freedom” não está sendo celebrado por Hollywood como a maior surpresa do ano ao superar concorrentes famosos como “Missão: Impossível – Acerto de Contas Parte 1”?
Afinal, o longa dirigido pelo mexicano Alejandro Monteverde é um exemplar rotineiro de ação em que um agente do Departamento de Segurança Interna americano, vivido por Jim Caviezel, decide fazer justiça com as próprias mãos para resgatar um menino das mãos de um grupo poderoso de pedófilos na Colômbia.
Um espectador incauto não notaria nenhum problema por trás desta trama heroica tão utilizada por Hollywood por décadas a fio. Mas “Sound of Freedom” está sendo acusado de ser veículo de propaganda do movimento QAnon, grupo que acredita que satanistas liberais estariam controlando o governo dos EUA e que traficantes sexuais a serviço dos democratas sequestrariam crianças pelo mundo para coletar um hormônio produzido pela tortura infantil que daria longevidade a vida de quem bebê-la.
Tanto o estúdio quanto o diretor negam essa ligação. “Nem em um milhão de anos imaginaria que [o filme] seria tão politizado”, disse o Alejandro Monteverde à revista Vanity Fair.
“Vi uma reportagem [sobre tráfico de crianças] na mídia conhecida e sempre achei que seria um filme que uniria todos nós.”
Não há razão para desconfiar do cineasta. Quando o projeto começou a ser escrito, era uma ficção chamada “The Model” sobre um milionário que decide se infiltrar no submundo do crime para comprar crianças sequestradas e recolocá-las de volta aos seus lares.
Um dos produtores do filme, então, trouxe a história de Tim Ballard, um ex-agente da agência da Segurança Interna dos EUA que fundou a Operation Underground Railroad, a OUR, uma organização sem fins lucrativos especializada em resgatar crianças.
Monteverde se encantou com as notícias envolvendo Ballard e reescreveu o roteiro para focar no desmonte real de um grupo de traficantes de crianças na Colômbia conduzido por ele e as autoridades locais, em 2014. As filmagens começaram em 2018 e, naquele ano, as teorias da conspiração QAnon eram mais encaradas como piadas.
Além disso, o orçamento de “Sound of Freedom” foi bancado por um grupo de financiadores mexicanos e Caviezel tinha recém-finalizado a série de sucesso “Person of Interest”, algo que daria mais peso ao longa no mercado internacional.
Os problemas surgiram no ano seguinte, quando a Disney completou a aquisição da 21st Century Fox, que distribuiria o filme nos Estados Unidos. Entre as dezenas de projetos herdados e posteriormente arquivados pelo estúdio estava “Sound of Freedom”.
O produtor Eduardo Verastegui passou um ano tentando comprar os direitos de volta da Disney, algo que ajudou a fomentar a teoria -sem fundamento- de que a empresa estava tentando esconder o longa.
O executivo finalmente conseguiu a aquisição e passou a distribuição para o pequeno Angel Studios, localizado no estado do Utah e especializado em pequenos projetos religiosos ou com temáticas positivas, como a série “O Escolhido”, da Netflix. Mas veio a pandemia em 2020 e atrasou o projeto em mais três anos.
Neste período, Caviezel começou a promover o filme em diversos eventos do QAnon. Neles, o ator voltou a espalhar a conspiração de que ricaços liberais traficam e torturam crianças para coletar o adenocromo, um composto químico –e real– derivado da adrenalina.
“É uma droga da elite usada há anos. É dez vezes mais potente que a heroína e tem qualidade místicas que te fazem parecer mais jovem”, disse ele, sem nenhuma prova, no podcast “War Room”, de Steve Bannon, ex-homem forte do governo Trump.
O grupo de Ballard também começou a ser alvo de críticas por parte de organizações especializadas no bem-estar de crianças vítimas de tráfico sexual, que precisam de longo acompanhamento médico. Os repórteres Tim Marchman e Anna Merlan, da Vice News, publicaram diversas reportagens mostrando que o OUR já assumiu créditos de resgate dos quais não foram protagonistas para criar “uma mitologia” ao redor da organização.
O próprio Ballard, que foi conselheiro do governo Trump a respeito do problema do tráfico de pessoas, se afastou recentemente do OUR sem dar nenhuma explicação e nega afiliação com o QAnon –apesar de já ter apoiado suas teorias em entrevistas, como a de que uma grande loja de móveis dos EUA traficava crianças dentro dos seus armários caríssimos, algo também sem nenhuma evidência.
De qualquer maneira, “Sound of Freedom” foi adotado por seus seguidores. “[O filme] foi vendido para adeptos do QAnon, abraçado pela comunidade e seu ator principal é uma parte grande da comunidade QAnon”, explicou Mike Rothschild, escritor do livro “The Storm Is Upon Us: How QAnon Became a Movement, Cult, and Conspiracy Theory of Everything”, à Rádio Pública Nacional.
O resultado é a politização de um longa com uma estratégia de marketing esperta que busca um público de direita e conservador muitas vezes menosprezado por Hollywood.
O Angel Studios bancou a distribuição por meio de um financiamento coletivo -com o nome dos apoiadores aparecendo nos longos créditos finais. E utilizou o artifício “Pague para o próximo”, no qual as pessoas –ou instituições– com mais dinheiro poderiam doar para que ingressos grátis fossem parar nas mãos de quem não teria condições de ir ao cinema.
O filme virou um sucesso inesperado de bilheteria ao estrear em 4 de julho, Dia da Independência dos EUA, rivalizando até mesmo com os números de “Indiana Jones e a Relíquia do Destino”. Na sua terceira semana, “Sound of Freedom” faturou US$ 19,8 milhões e superou o mais recente “Missão: Impossível”, que rendeu US$ 19,4 milhões.
No total, o filme já fez mais de US$ 130 milhões, dez vezes seu orçamento inicial. No momento, é a 14ª bilheteria do ano.
O sucesso gerou, claro, uma nova confusão entre direita e esquerda. Um lado acusou o filme de “enfeitar” os números com milhares de ingressos comprados por igrejas e empresas pelo app “Pay It Forward”, mas que resultam em salas vazias. Do outro lado, fãs do longa disseram que a rede de cinemas AMC estaria cortando sessões da produção para impedir seu sucesso.
“Infelizmente, teóricos da conspiração estão prevalecendo nos EUA”, escreveu Adam Aron, presidente da AMC, no Twitter. “Mais de um milhão de pessoas assistiram a ‘Sound of Freedom’ nos nossos cinemas. Mais do que em qualquer outra rede no mundo. Mesmo assim, as pessoas falsamente alegam o contrário. É bizarro.”
Até o Angel Studios precisou se pronunciar. “Gostaríamos de deixar claro que esses boatos não são verdadeiros”, declarou Brandon Purdie, chefe de distribuição do estúdio. “A AMC tem sido uma parceira incrível.”
O estúdio acabou de divulgar as primeiras datas das estreias internacionais, com boa parte da América Latina confirmada para 31 de agosto. Mas “Sound of Freedom” ainda não tem previsão para chegar ao Brasil.
RODRIGO SALEM / Folhapress