Como Truman Capote, 100, usou seu gênio perverso para detonar terremoto literário

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na contracapa do primeiro livro de Truman Capote, a imagem dizia tudo: ele aparecia deitado num divã, olhando languidamente para o espectador, e lembrava alguma figura mitológica, um elfo, talvez um ator de cinema.

A fotografia ajudou a vender o livro, “Outras Vozes, Outro Rooms”, e seu autor, que tinha 24 anos quando foi publicado em 1948, posou de forma que o definiria como escritor e celebridade. A obra, um gótico sulista com certo atrevimento erótico, ainda não era sua obra-prima, mas o escritor de olhar um tanto perverso, um tanto erotizado, já se apresentava ao mundo.

O próximo dia 30 marca os cem anos do nascimento do escritor em New Orleans, no estado americano da Louisiana. Batizado como Truman Streckfus Persons, seus pais se divorciaram cedo, e ele foi mandado para uma cidadezinha do Alabama, chamada Monroeville, que ainda hoje não tem muito mais que 5.000 habitantes.

Sua infância foi vivida de casa em casa entre vários parentes sulistas, e em Monroeville conheceu Harper Lee, a autora de “O Sol É para Todos”, uma amiga da vida inteira que o ajudaria nas pesquisas de “A Sangue Frio”, essa sim a obra-prima composta como um romance de não-ficção.

O sobrenome Capote apareceu quando a mãe se casou pela segunda vez com um comerciante de origem espanhola e negócios em Cuba, José García Capote, que adotou o garoto.

O Truman Capote na contracapa do primeiro livro não deixava ver a baixa estatura, a voz de timbre esganiçado, cômico, e os trejeitos afeminados. Mas o garoto era mesmo um gênio, e a perversidade cresceria com ele e contaminaria todos os aspectos importantes da sua biografia.

Aos cinco anos, Truman já sabia ler e escrever por conta própria, ainda que vivendo com parentes iletrados. Dizem que escrevia num bloco de notas o que, aos 11 anos, já seria o material de um livro.

Ao se mudar com o padrasto para Nova York, estudou em boas escolas e trabalhava como contínuo da revista New Yorker, quando, aos 17 anos, decidiu não fazer uma universidade, mas formar-se na vida.

Autoestima nunca foi um problema para ele. O primeiro conto que conseguiu publicar numa revista, “Miriam”, uma história de dupla personalidade pintada com tintas esparsas de terror, foi um sucesso.

Os livros futuros seriam impulsionados por esse momento inicial, e em 1966 seu “A Sangue Frio”, a história de uma família assassinada no interior do Kansas escrita com os instrumentos do jornalismo e da literatura, seria o seu clímax literário.

Foram seis anos de pesquisas, entrevistas, descobertas e tormentos para chegar ao resultado final. A história de como ele foi escrito daria um outro romance.

Capote chegou a Holcomb, cidadezinha em cujas redondezas aconteceram os crimes, só um mês depois da pequena nota que lera no jornal The New York Times sobre o caso. Foi visto como um alienígena. Apaixonou-se por um dos assassinos, Perry Smith, teve que assistir a sua execução e, como precisava pôr o ponto final no livro com ela, se exasperou pela demora com que tudo ocorria.

Mas no fim de todos os dilemas, surge o livro escrito com a clareza, a inteligência e a vivacidade que fariam dele um dos autores mais aclamados do século 20.

Foi um dos primeiros capazes de recontar o real com os instrumentos da fantasia, naquilo que seria chamado de jornalismo literário –termo que, no caso de “A Sangue Frio”, não parece dar conta da explosão de força assombrosa que o livro detonou na cultura americana e na literatura universal.

Antes disso, “Bonequinha de Luxo”, lançado em 1958 e levado ao cinema com Audrey Hepburn em 1961, já trazia os elementos mundanos que contaminariam a sua vida e o seu trabalho.

Capote era chegado na alta roda, e Freud ficaria entediado se tivesse que explicar o óbvio: o menino caipira imaginativo e desamparado do buraco sulista encontrara sua turma em Nova York, e das suas amigas, pinçaria as partes que comporiam a protagonita Holly Golightly, acompanhante sonhadora de ricaços da cidade.

Mas Capote possuía um talento verdadeiro. Era um escritor que dava duro, totalmente voltado para o trabalho, dono de estilo inigualável. Não era apenas ferino, mas incisivo, muitas vezes terno e delicado, outras vezes demolidor e implacável.

Basta ler o comovente “A Christmas Memory”, o conto de Natal em que ele lembra sua infância mais remota, no fundo do Alabama, na companhia de uma prima distante cujo rosto lembra o presidente Abraham Lincoln e tem as excentricidades de um personagem de Mark Twain. É uma história feliz de amizade e amor que virou um clássico natalino lido nas escolas até hoje, sempre repetido em inúmeras antologias.

Em matéria de maldade e língua venenosa, nada supera o inacabado “Súplicas Atendidas”, que ele prometeu logo depois de “A Sangue Frio” e nunca entregou, com exceção de alguns trechos publicados na revista Esquire.

Ali estavam retratadas, de maneira ruidosa e grosseira, a vida íntima das amigas da alta roda que ele chamava de “Cisnes” –a mais recente temporada da série antológica “Feud”, da FX, recontou essa parte de sua biografia.

Um dos trechos, “La Côte Basque 1965”, fofocava sobre Ann Woodward, viúva de um magnata que assassinara alegando que o confundira com um ladrão. A leitura do texto antes da publicação levou a mulher ao suicídio, e essa foi apenas uma das desgraças que se abateriam sobre o autor nas décadas seguintes.

Condenado ao esquecimento, Capote nunca mais escreveu nada que prestasse. Nunca foi o Proust de “Em Busca do Tempo Perdido”, como prometera ser. Afundou-se no álcool e nas drogas e morreu cedo, aos 59 anos, em agosto de 1984.

Mas dentro desse bajulador de ricaças havia um escritor único, capaz de montar frases belas e definitivas com originalidade fulgurante. Havia o homem abertamente gay num tempo em que isso não era sequer tolerado.

A amiga Harper Lee o retratara, em “O Sol É para Todos”, como o menino Dill Harris, sensível, inteligente, curioso, empático com os solitários e excluídos –acima de tudo, um ser voltado para a imaginação. Os dois prismas precisam ser contemplados no centenário desse gênio perverso que foi Truman Capote.

CADÃO VOLPATO / Folhapress

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