Como um selo criou uma tropa de artistas ‘fantasmas’ para bombar no streaming

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Minutos antes de Paulinho da Viola subir ao palco do Espaço Unimed, casa de shows paulistana, neste mês de outubro, a plateia procura suas mesas enquanto os garçons transitam com bandejas. Ao fundo, no som mecânico da casa, uma doce voz feminina interpreta “Da Ya Think I’m Sexy?”, de Rod Stewart. Em seguida, a playlist traz uma versão calma e contida de “Boys Don’t Cry”, do The Cure.

São gravações com versões meio jazz, meio bossa nova de sucessos de décadas atrás. É o estilo de música que costuma ser ouvido nos corredores de supermercado, nos provadores de lojas de roupa, nos espaços de convivência de hotéis e nas mesas das cafeterias.

Uma busca no streaming revela que a voz por trás do cover de Rod Stewart, com quase 20 milhões de reproduções, é de uma artista chamada Cassandra Beck, enquanto quem canta o hit do The Cure, com 30 milhões de plays, é Jamie Lancaster. Para termos de comparação, um clássico da bossa nova como “Desafinado”, de João Gilberto, tem cerca de 40 milhões de reproduções na plataforma.

Mas as informações disponíveis sobre esses artistas são escassas —não há fotos, páginas nas redes sociais ou menções aos cantores em qualquer veículo de imprensa mundo afora. As páginas de Beck e Lancaster levam ao perfil da gravadora Pure Music Brokers.

É um selo que publica centenas de faixas de cantores variados, mas com as mesmas características dessa dupla, ou seja, regravações de sucessos do pop, do rock e do reggae, que são atribuídas a um exército de artistas que parecem fantasmas e figuram em playlists com milhões de reproduções.

“Eles não existem”, diz Karen Souza, cantora argentina que segue esse mesmo estilo e foi uma das estrelas do selo Music Brokers, de Buenos Aires. “Você vê as imagens, mas não são pessoas de verdade. Eu era a única pessoa de verdade.”

Souza se refere à prática da gravadora de fabricar perfis de cantores que não existem e alimentá-los com canções gravadas por diferentes artistas. “Se você prestar atenção, alguns dos cantores [do selo] são os mesmos. Só muda os nomes. Eu mesma já cantei com eles”, afirma ela, que deixou o selo.

Tudo isso faz parte de uma estratégia da empresa para dominar os algoritmos das plataformas de streaming, de acordo com profissionais da indústria da música ligadas ao selo, que conversaram com a reportagem em condição de anonimato.

Na prática, são perfis feitos sob medida para dominar as playlists populares, além daquelas criadas pelo próprio selo, que são interligadas para potencializar o alcance e multiplicar as reproduções. Os artistas, na maioria das vezes anônimos, funcionam como músicos de estúdio —isto é, ganham por sessão de gravação, mas não uma fatia dos lucros.

Segundo os profissionais ouvidos pela reportagem, o selo tem um banco de dados com músicos e produtores de várias partes do mundo. Eles gravam as canções lançadas indiscriminadamente nesses perfis inventados conforme a demanda da gravadora ou por sugestão deles mesmos.

Há uma série de métodos adotados pelo selo. Os perfis têm cerca de meio milhão de ouvintes mensais no Spotify, figuram nas mesmas playlists temáticas de jazz, bossa nova ou reggae, fazem colaborações entre si, não estão nas redes sociais nem dão entrevistas. Seus textos de apresentação, por fim, são genéricos.

Não é muito difícil perceber que um mesmo cantor está com a voz totalmente diferente de uma faixa para a outra. Se não funciona em um determinado timbre, a canção é regravada por outro artista, com arranjo de outros músicos, e vai ao ar no perfil mais conveniente.

Diferentemente de outros nomes da gravadora, Souza é alguém de carne e osso e deu entrevista por chamada de vídeo. Ela hoje lança material autoral e de maneira independente. Afirma que deixou o selo porque eles não sabiam lidar com “artistas de verdade” e “não têm artistas de verdade”.

Entre os artistas do selo, está o Stella Starlight Trio, que é definido como uma dupla de baterista e trompetista mais um pianista, sem nomes. Eles recriam clássicos em jazz com cantoras diversas. Seu maior sucesso é uma versão de “Tainted Love”, da banda Soft Cell, que soma 24 milhões de reproduções.

Como eles, há dezenas de artistas, alguns com nomes bastante caricatos. O Groove da Praia, com mais de 30 milhões de plays, numa versão suave de “Is This Love”, de Bob Marley, é descrita como uma banda de Porto Alegre que mora na Jamaica.

Há ainda Michelle Simonal. Seu parentesco com Wilson Simonal é tão improvável quanto sua própria existência. Ela é descrita como uma cantora versátil, uma “referência para qualquer interessado em versões sofisticadas de clássicos do pop”. Seu maior sucesso é uma reinterpretação no estilo lounge de “With or Without You”, do U2, com quase 20 milhões de reproduções.

Muitas dessas músicas figuram em playlists famosas, incluindo aquelas feitas pelas próprias plataformas de streaming. Elas casam especialmente com as chamadas “playlists de mood”, que remetem a um determinado sentimento, como uma seleção de músicas para relaxar.

As canções do Music Brokers também combinam com determinados ambientes de consumo. Hoje, há empresas que cobram por serviços de curadoria musical para o som ambiente de espaços como lojas, bares e restaurantes, entre outros serviços.

No Brasil, a Bananas Music presta esse tipo de serviço. Rafael Achutti, um dos sócios e diretor de estratégia da empresa, diz que uma playlist adequada pode fazer um cliente permanecer mais tempo num estabelecimento e, portanto, comprar mais. Sutis e de melodias conhecidas pelo grande público, as canções do Music Brokers soam confortáveis para a maioria dos ouvidos.

O assunto dos perfis fantasmas é um segredo para quem trabalha ou trabalhou para o selo. Não porque haja alguma implicação criminal —afinal, não é proibido que músicos tenham pseudônimos, gravem com colaboradores diversos sob o mesmo nome ou sejam alheios a redes sociais e entrevistas—, mas para manter um certo fascínio do público por aqueles artistas inventados.

Fundado pelos sócios Federico Scialabba e Julián Cohen em 1997, em Buenos Aires, o Music Brokers começou como um selo tradicional. O que o fez estourar foi a compilação “Bossa n’ Stones”, de 2005, com regravações de músicas dos Rolling Stones no gênero brasileiro, que vendeu mais de 5 milhões de cópias.

Hoje, a empresa tem outros títulos de sucesso, como o “Jazz and 80s” e o “Vintage Café”, mas agora como playlists, adaptadas ao modelo do streaming. Uma gravação deles de “You Can’t Always Get What You Want”, dos Stones, chegou a figurar numa cena importante que ajudou a série “Big Little Lies”, da HBO, a ganhar um Emmy de supervisão musical.

Responsável pela divisão de artistas e repertório do Music Brokers, Diego Andrea Ceccoli diz que a gravadora começou a fazer sucesso quando passou a trabalhar com artistas de uma cena emergente de bossa nova do Brasil e dos Estados Unidos nos anos 2000. Atualmente, diz ele, o selo está presente em dez países.

Mas Ceccoli, apesar do cargo, responsável pela seleção de talentos e por fazer o meio de campo dos artistas com a gravadora, não tem contato com a grande maioria dos músicos. Primeiro, diz que os cantores são como uma família, mas depois afirma que não poderia entrar em contato com eles para intermediar entrevistas.

Quem ele conhece bem, diz, é Karen Souza, que já não trabalha mais para o selo. E também Sarah Menescal, cujo maior sucesso é uma interpretação ao violão de “Don’t Speak”, do No Doubt, com quase 60 milhões de reproduções.

Ela é uma das poucas que possui uma página no Instagram, ainda que genérica e pouco atualizada. A cantora, diz o executivo, não pôde dar entrevista porque estava com um problema familiar. Nenhum dos emails ou mensagens em redes sociais enviados foi respondido pelos canais oficiais do Music Brokers.

“Há artistas que são mais de estúdio mesmo, introspectivos. Não gostam de ter rede social nem de fazer show. Não gostam de ser expostos”, diz Ceccoli. Ele afirma que cada músico trabalha de um jeito, mas a maioria chega com as músicas prontas e o selo só faz a distribuição.

Ao ser questionado se os perfis seriam inventados e alimentados por gravações de músicos diferentes, o executivo diz que “Madonna não se chama Madonna” —ou seja, se trataria de uma questão de nome artístico. Ele diz que não sabe se há mais de um artista cantando sob um mesmo nome nem se há mais de um nome para o mesmo artista.

Se dão entrevistas? “Imagino que sim, mas não sei”, disse o executivo. Algum deles falaria com a Folha? “É só ir até as redes sociais deles e mandar mensagem. Veja se eles querem falar”, respondeu ele. A maioria, contudo, não tem página em rede social ou não responde aos contatos.

Willy Cooper, um produtor musical e engenheiro de som independente que grava para o Music Brokers, conta que seleciona canções com potencial para virar versões no estilo do selo. Ele toca todos os instrumentos e colabora com diferentes cantores. Fã de jazz e bossa nova, atua como freelancer. Grava as músicas em seu estúdio, na zona rural de Buenos Aires, e as vende para a gravadora.

“Às vezes, um cantor que está longe manda áudio com a gravação da voz, mas em geral eu os recebo em meu estúdio”, diz. “Há produtores que trabalham a pedido da empresa, mas no meu caso sou eu quem proponho cantores e músicas. Trabalho com dois ou três cantores. Já é bastante. Entrego o produto pronto. Me pagam pela gravação.”

Ele diz que o Music Brokers é craque em lidar com as playlists, “mais do que com os artistas em si”. “Funciona muito bem. É como eles conseguiram se posicionar”, diz. ” Minhas gravações geram milhões de reproduções. Sei que não é porque sou genial. É algo que tem a ver com algoritmo.”

Cooper diz que prefere não saber mais detalhes de como as coisas funcionam para não perder o romantismo no fazer musical. Para ele, a indústria da música tem práticas que não são leais ou justas. Uma delas é a forma de pagamento.

O produtor afirma que no selo há exceções —ou seja, cantores que são reais e cobram os royalties de acordo com o desempenho das músicas no streaming—, mas a maioria trabalha mesmo como músico de estúdio. “Você canta a música, é pago por isso e pronto. Quando algum cantor é mais interessante, há um contrato.”

“Sei que o Spotify paga pouco por reprodução, mas quando se tem milhões é outra história. Você pensa, ‘fiz o produto completo e não chegou nada disso para mim’”, diz Cooper. “Mas já que não ganho esse dinheiro, pelo menos tenho a possibilidade de trabalhar com quem quero, cobrar um pouco mais que os outros e ter continuidade.”

LUCAS BRÊDA / Folhapress

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