BRUMADINHO, MG (FOLHAPRESS) – Em 1968, Yayoi Kusama reuniu dançarinos nus numa performance de protesto contra o financiamento da guerra do Vietnã, em frente à Bolsa de Valores de Nova York. Mais de cinquenta anos depois, uma escultura gigante da artista abraçava o topo de uma loja da Louis Vuitton em Paris, simulando o gesto de colar bolinhas coloridas na fachada do prédio.
A artista japonesa mais pop do século 20 tem uma trajetória peculiar em seus 70 anos de atuação, Kusama foi de ícone progressista à representante capitalista, fazendo um trabalho reconhecido pelos principais museus e galerias do mundo enquanto associava seu nome a produtos de consumo de massa, até se tornar, por duas vezes em anos recentes, uma linha de carteiras e bolsas da grife de luxo francesa.
É neste contexto histórico que Inhotim acaba de abrir para o público um pavilhão dedicado à obra da artista de 94 anos. A 20ª galeria permanente do museu mineiro, a primeira inauguração da instituição em oito anos, traz duas instalações imersivas de Kusama com potencial de gerar longas filas comum quando suas obras são exibidas e muitas fotos no Instagram.
Em “Im Here But Nothing”, de 2000, Kusama colou milhares de adesivos de bolinhas coloridas num ambiente que reproduz os interiores de uma casa mesa de jantar, sofá, poltrona, televisão, plantas e porta guarda-chuvas, nada escapou dos pontinhos. Iluminados por luz negra, eles brilham no escuro. Quem vê fotos da obra tem a impressão de que as bolinhas, um motivo recorrente no trabalho da artista, flutuam no espaço, envolvendo os visitantes.
Na outra instalação, “Aftermath of Obliteration of Eternity”, de 2009, o espectador entra numa sala escura rodeada de espelhos, iluminada delicadamente por centenas de pequenas lâmpadas amarelas que acendem e apagam devagar. A infinidade de reflexos dá a ideia de que se está perdido no espaço entre milhares de lanternas, numa junção do organismo com o cosmo, o que pressupõe a ideia de apagamento do indivíduo, outro ponto central da obra da japonesa. A obra faz parte da série das “infinity rooms”, que começou nos anos 1960.
“Acho que para Yayoi a bolsa da Louis Vuitton não é diferente de uma pintura, é tudo um contínuo. Para ela, é qualquer coisa onde um ponto possa ser colocado, e talvez isso tenha a ver com os seus olhos ou sua percepção, pode ser algo muito físico ou muito psicológico. Ela é uma artista única, não acho que qualquer coisa que ela abraçou tenha comprometido seu trabalho ou sua visão”, afirma o crítico Allan Schwartzman, cofundador de Inhotim e um dos responsáveis pelo pavilhão da artista.
Schwartzman, contudo, faz uma ressalva. Ao contrário dos outros artistas com pavilhões em Inhotim, ele afirma não conhecer Kusama pessoalmente, nem saber suas opiniões sobre política e economia, ou seja, não há como saber com precisão como a artista pensa sobre a relação entre os produtos que assina e sua arte.
Kusama nasceu em 1929 em Matsumoto, uma cidade a cerca de 200 quilômetros de Tóquio. Segundo contou em entrevistas, desde criança ela queria ser artista, mas isso ia contra o desejo de sua família. A mãe esperava que ela encontrasse um marido estável financeiramente e se tornasse uma dona de casa, assim como sua irmã. Mesmo neste ambiente conservador, Kusama perseverou e estudou pintura tradicional japonesa.
Mas foi bem longe de seu país natal que sua carreira deslanchou. Em 1957, mudou-se para Nova York e se enfronhou na cena cultural da cidade. Poucos anos depois, expunha ao lado de Claes Odenburg e Andy Warhol, dois ícones da pop art, movimento que influenciaria o seu trabalho. Naquela época, Kusama começou a pintar sua famosa série de “infinity nets”, telas de fundo monocromático sobre o qual desenhava bolinhas que formavam uma rede.
Anos mais tarde, começou a desenhar os pontinhos sobre os corpos de modelos nus, tornando-se uma das pioneiras da performance ao colocar o corpo como obra de arte, muitas vezes nas ruas da cidade. Em paralelo, mantinha um interesse em moda. Ela criou sua própria marca, para a qual desenhava modelos ousados com buracos que deixavam à mostra os seios, as nádegas e os genitais.
A artista também passou a ser fotografada com modelitos que se confundiam com suas obras, a exemplo de vestidos de bolinhas, e a usar perucas coloridas. Portanto, não foi exatamente uma surpresa quando, em 2012, Kusama lançou pela primeira vez uma linha de vestuário e acessórios pela Louis Vuitton, feito que repetiu com estardalhaço dez anos depois.
Após a longa temporada nos EUA, a artista voltou para Tóquio em 1973, onde se internou voluntariamente numa instituição psiquiátrica, na qual passou a viver e mora até hoje. Seu estúdio fica próximo deste asilo. Kusama disse em entrevistas viver com alucinações desde criança segundo ela, as bolinhas de suas obras vieram daí.
Com o pavilhão recém-inaugurado, Inhotim passa a ter três obras da artista em exposição. A outra é “Narcissus Garden”, uma série de bolas de metal que flutuam sobre a água e se mexem com o vento. A montagem das duas novas instalações foi acompanhada pela equipe da artista em Tóquio, e esta é a primeira vez que uma de suas “infinity rooms” é construída localmente, de acordo com Douglas de Freitas, curador de Inhotim em outras montagens, os componentes da obra viajavam a partir do Japão.
Pensado pelos arquitetos Fernando Maculan e Maria Paz, o exterior do pavilhão de Kusama é uma grande parede de aço corten que esconde as portas de entradas para as obras. Quem chega pode esperar numa praça com bancos de madeira e densa vegetação baixa, um ambiente pensado para acomodar as possíveis filas. Esta praça é coberta por tramas de aço inox nas quais foram plantadas mudas de congéia, uma trepadeira com a mesma coloração das cerejeiras japonesas e que, conforme crescer, fará sombra no local.
Custeado com verbas obtidas via Lei Rouanet, o pavilhão estava inicialmente previsto para ser inaugurado em 2020, mas a pandemia e chuvas fortes que afetaram as obras atrasaram a construção, de acordo com os arquitetos. Ele chega num momento de mudanças para Inhotim Júlia Rebouças acaba de assumir a direção artística do museu, após a saída de Julieta González, que ficou conhecida, em seus menos de dois anos no cargo, pelas exposições de resgate do legado do escritor e ativista negro Abdias do Nascimento.
Sem saber, Kusama parece ter previsto a atual onda de mostras imersivas de fortíssimo apelo imagético. Já há anos, onde quer que ela exponha, arrasta uma multidão disposta a se perder em suas salas lúdicas. Por quê suas obras são tão atrativas? “São trabalhos que criam espaços psicológicos e distintas experiências do corpo no espaço”, afirma Freitas, o curador. “São imagens instagramáveis e a gente vive num mundo de imagens. Faz cada vez mais sentido o trabalho dela.”
GALERIA YAYOI KUSAMA
Quando em exposição permanente
Onde Inhotim – r. B, 20, Brumadinho, Minas Gerais
Preço R$ 50 (entrada para o parque); grátis às quartas
JOÃO PERASSOLO / Folhapress