RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – De 1967 a 1972, Zé Celso, morto nesta quinta-feira vítima de um incêndio em seu apartamento, foi o principal líder da rebelião cultural do Teatro Oficina na arte brasileira.
O ciclo transgressor engloba as montagens de “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, “Roda Viva”, de Chico Buarque, “Galileu Galilei” e “Na Selva das Cidades”, de Bertolt Brecht, “Gracias, Señor”, uma criação coletiva, e “As Três Irmãs”, de Anton Tchekhov.
A radicalização política dos anos João Goulart, o golpe de 1964 e a consolidação de uma ditadura militar obrigaram o Oficina a refletir as violências, os retrocessos e as mudanças sociais do país na própria estrutura dos espetáculos, rompendo com o chamado teatro burguês, de bom gosto.
Como resultado dessas buscas formais, surgiu a encenação realista de “Os Pequenos Burgueses”, de Máximo Gorki, em 1963, um dos maiores sucessos do grupo remontada até 1971 e responsável pela ascensão de Zé Celso entre os críticos.
O espetáculo expressava um aprendizado rigoroso do método de Constantin Stanislavski em laboratórios conduzidos por Eugênio Kusnet com os atores Raul Cortez, Célia Helena, Renato Borghi e Ítala Nandi, entre outros.
O fogo precipitou a transformação física do espaço. Em maio de 1966, um incêndio destruiu o Teatro Oficina, na rua Jaceguai, 520. Nesse ano, depois de um festival retrospectivo, a companhia viajou para o Rio de Janeiro e desenvolveu um laboratório de interpretação com o diretor e ensaísta Luiz Carlos Maciel.
Eles buscavam uma nova gestualidade a partir das ideias de Brecht e do psiquiatra Wilhelm Reich, mergulhando em um curso de filosofia e política com o marxista Leandro Konder.
No fim dos estudos, Maciel sugeriu a montagem de uma peça obscura de Oswald para marcar a virada estilística do Oficina. Escrita em 1933, a obra lhe fora apresentada anos antes pelo crítico e diretor italiano Ruggero Jacobbi, em Porto Alegre.
A princípio, Zé Celso não viu potencial no texto e ignorou a sugestão, mas Renato Borghi deu uma segunda chance e organizou uma leitura em seu apartamento. Os atores se deleitaram com o teatro de Oswald.
Em setembro de 1967, na reabertura do Oficina com palco italiano e giratório, “O Rei da Vela” convulsionou o teatro brasileiro. A representação paródica e anárquica se unia à cenografia imaginosa de Hélio Eichbauer, à vanguarda musical de Rogério Duprat e Damiano Cozzella e à coreografia de Maria Esther Stockler.
Todos os atores, de Borghi a Ítala Nandi, eram regidos pela mente tropicalista de Zé Celso, o revelador do espírito da dramaturgia de Oswald. Mais do que o meio teatral, a cultura brasileira sofreu seu impacto abrangente.
“Eu padeço talvez do mal do teatro do meu tempo, mas dirigindo Oswald espero me contagiar um pouco, e todo o elenco, com sua liberdade. Ele deflorou a barreira da criação no teatro e nos mostrou as possibilidades do teatro como forma, isto é, como arte. Como expressão audiovisual. E principalmente como mau gosto”, escreveu Zé Celso no “Manifesto do Oficina”.
Ele dosava “a superteatralidade, a superação mesmo do realismo brechtiano através de uma arte teatral síntese de todas as artes e não artes circo, show, teatro de revista, entre outras”. Nascia ali, ainda, sua figura de intelectual público autocrítico, imodesto, possesso e contestador.
Dedicado a Glauber Rocha, “O Rei da Vela” reconhecia sua dívida com o imaginário brasileiro de “Terra em Transe”, filme que também influenciara Caetano Veloso na gênese da tropicália, esboçado em conversas com Gilberto Gil, Rogério Duarte e José Agrippino de Paula.
Uma semana antes de ver “O Rei da Vela”, Caetano concluiu a canção “Tropicália”, assim batizada por sugestão do produtor Luiz Carlos Barreto, que reconheceu sua identidade com o penetrável de Hélio Oiticica exposto no Museu de Arte Moderna do Rio.
O movimento tropicalista aglutinou música, teatro, cinema, literatura e artes plásticas em radiografias críticas e debochadas do Brasil, numa revisão da nacionalidade pelo seu avesso, sem hierarquias entre baixa e alta cultura, no abrangente diálogo com a indústria cultural, a televisão, a moda, os mitos arcaicos, a rebeldia urbana e as informações estéticas internacionais.
Dentre os expoentes da tropicália, Zé Celso foi o único a manter Oswald como vetor permanente de sua abordagem carnavalizante do país, um filtro de inteligência nas adaptações de autores de estilos diversos, como Artaud, Euclides da Cunha e Davi Kopenawa. Nesse percurso, Brecht e Stanislavski ficaram para trás, como etapas históricas sim, valiosas de seu jogo cênico.
Ao contrário dos dois teóricos do teatro, Oswald se manteve soberano no papel de oráculo antropofágico, alquimista da fórmula de devorar a cultura estrangeira na criação de uma arte reveladora do inconsciente brasileiro, para descolonizá-lo no corpo, na mente e, por que não, no sexo.
A viagem antropofágica de Zé Celso pôs em termos radicais o vínculo de sua geração com o modernismo de 1922, sem dúvida ainda mais avançado em suas transgressões.
Em 1968, a peça “Roda Viva”, de Chico Buarque, levou a outra inflexão no teatro moderno e virou um marco no enfrentamento cultural da ditadura. Em alguns momentos, Zé Celso afirmou que “O Rei da Vela” preparou terreno para a revolução mais larga do “Roda Viva”.
A história de um ídolo popular, Ben Silver, engolfado pela engrenagem da sociedade de consumo, permitiu mudanças na interação entre atores e espectadores, derrubando a rígida separação no espaço cênico. “Os censores foram ver os ensaios. Chico estava presente. Ninguém olhou para a peça. Chico era muito jovem e lindo. Ficaram todos olhando para os olhos do Chico”, lembrou Zé Celso no ano passado.
No fim dos anos 1960, o crítico Anatol Rosenfeld filiou o Oficina ao “teatro agressivo”, em que a violência traduzia as ideias antiacadêmicas. Numa ilustração crua desse rótulo, que não o agradava, Zé Celso arrancaria os óculos de Rosenfeld na plateia de “Gracias, Señor”.
Os choques estéticos do Oficina conquistavam dimensão política. Em julho de 1968, o ataque do CCC, o Comando de Caça aos Comunistas, ao elenco do “Roda Viva”, no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, explicitou a onda crescente de terror que culminaria com o Ato Institucional Nº 5, o AI- 5. A censura cumpriria o resto do serviço.
Depois do AI-5, cresceram as divergências internas do grupo, mas as pesquisas estéticas seguiram seu curso. Os atores Renato Borghi e Fernando Peixoto pressionaram pela entrada do Oficina na obra de Brecht, com “Galileu Galilei”, em 1968, e “Na Selva das Cidades”, em 1969. A esta altura, Zé Celso estendia suas referências ao teatro experimental do polonês Jerzy Grotowski.
As duas montagens de Brecht se tocavam nas jornadas de ensaios. “À noite, o Oficina entrega-se ao racionalismo científico de Galileu, à tarde ao irracionalismo das primeiras tentativas de criar em Na Selva das Cidades um teatro mais despojado e mais entregue, marcado pelo caos e pelo irracionalismo”, testemunhou Fernando Peixoto, nome central nos debates teóricos, em seu livro “Teatro em Aberto”, de 2012.
Em 1970, os grupos teatrais Os Lobos, da Argentina, e o Living Theatrer, de Julian Beck e Judith Malina, dos Estados Unidos, vieram ao Brasil desenvolver um trabalho conjunto com os atores do Oficina. Não houve química. Nesse breve convívio, Zé Celso sentiu algum impulso messiânico e colonialista dos americanos, apesar das semelhanças nas experimentações.
Em 1972, “Gracias, Senõr”, fruto de criação textual coletiva, foi censurada e ampliou as dívidas do Oficina, desafiado a reorganizar sua rebeldia na contracultura. Os desacordos internos levariam pouco a pouco à saída de Ítala Nandi, Fernando Peixoto e Borghi.
“As Três Irmãs”, de Tchecov, radicalizou o uso de drogas na criação dos espetáculos, em 1972. “A gente se drogava muito. A gente fez todo o trabalho baseado na mescalina. Eu estava com Celso Lucas, a gente namorava até, dormia junto e acordava de madrugada para ir a Boraceia de manhã. Subia no morro e tomava a mescalina orgânica. Aí a gente tinha mensagem russa e até uma gaivota morta. Então, criamos esse ritual da peça como uma mandala. A gente se concentrava numa mandala, fumava, tomava tudo quanto é droga, ficava concentrado”, contou Zé Celso, em sua casa, em maio deste ano.
As convulsões poéticas do Oficina seriam sufocadas, nos dois anos seguintes, pela censura e por batidas policiais. Em setembro de 1974, depois de ser preso e torturado por três semanas no Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, em São Paulo, Zé Celso partiu para o exílio em Portugal, onde não precisou mais inventar uma revolução.
Bastou se integrar àquela que instaurava, com cravos, a democracia entre os portugueses. À deriva, a antropofagia do Oficina mudava-se para as colinas do ex-colonizador.
CLAUDIO LEAL / Folhapress