Conceito de gastar mais para economizar, o spaving, pode levar ao endividamento

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A imagem do chefe de família sempre preocupado em economizar, Julius, o personagem interpretado por Terry Crews na série “Todo mundo odeia o Chris”, tinha uma frase pronta quando alguém aparecia com uma oferta imperdível:

“Se eu não comprar nada, o desconto é bem maior.”

“Cada vez mais há as promoções que te fazem adquirir algo que você não precisa pela sensação de estar economizando. São pequenos gastos que não parecem pesar, mas pesam. Ainda mais em um país de juros altos como o Brasil. Na verdade, você está gastando mais porque o desconto oferecido já está dentro do preço de mercado do produto”, afirma Renan Pieri, economista e professor da FGV EAESP (Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas).

Ele se refere a um expediente comercial que os americanos cunharam um termo para definir: spaving. É o conceito de gastar mais para economizar mais.

Isso se tornou cada vez mais comum nos últimos anos. Operadoras de cartão de crédito avisam que o cliente fica isento da anuidade quando a fatura chega a determinado valor. Ou o marketplace oferece o frete grátis se as compras atingirem um montante estabelecido.

No supermercado, por exemplo, o cartaz mostra que o iogurte custa R$ 12, mas se o consumidor levar cinco, cada um sai por R$ 10,90. A loja dá um crédito, o cashback, caso o cliente faça uma nova compra no prazo de 30 dias.

É estratégia de marketing de induzir a sensação de levar vantagem, dizem especialistas.

“A gente tem a falsa impressão de ganhar. É isso o que o comércio quer passar. Envolve a questão do imediatismo, do que é desejo e do que é necessidade. A lanchonete te avisa que por mais R$ 2 você pode levar a batata frita. Você nem gosta ou está com fome para a batata, mas leva pela sensação de vantagem”, diz Lucas Muniz, doutorando em Economia na Unicamp, matemático e professor da Universidade Federal de Alagoas.

O spaving foi palavra criada nos Estados Unidos também por causa de uma preocupação: o endividamento da população.

As dívidas de cartão crédito no país chegaram a US$ 1,12 trilhão (R$ 5,9 trilhões) no primeiro quadrimestre deste ano, segundo relatório do Fed (Federal Reserve, o banco central). Ao mesmo tempo, nos últimos 12 meses as promoções com quedas temporárias de preço cresceram 72% de acordo com a Numerator, empresa que compila dados de consumo.

O endividamento de famílias cresceu no Brasil. Em março, 78,1% delas afirmaram ter débitos prestes a vencer, um aumento de 0,2% em relação a fevereiro, mostram dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor realizada pela CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo.

Este problema atinge principalmente quem ganha até três salários mínimos (R$ 4.236). Representa 79,7% dos devedores. Faturas de cartão de crédito são o problema maior para 86,9% dos endividados.

“A gente se esquece que existem classes sociais diferentes. Há quem possa arriscar e gastar. Outros, não. O consumidor despreparado, sem educação financeira, vê vantagem, coloca no cartão e vai acumulando. Aí pensa que está tudo bem se consumir cada vez mais”, completa Muniz.

Pode ser difícil resistir. Estudos sobre o comportamento do consumidor apontam que grande parte do ato de comprar está ligado a um processo inconsciente.

“O consumidor não pode fazer nada. Ou melhor, o ser humano não pode fazer nada. Há estudos sobre neurociência que explicam em valores o nosso processamento cerebral. Sendo ele, apenas 5% são conscientes, enquanto 95% são inconsciente. Do ponto de vista das motivações, o que se observa é que nós sempre vamos inconscientemente acessar um sistema de recompensa que está diretamente voltado à satisfação”, afirma Roberta Scorcio, professora da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing).

Para o Procon, existe também outro aspecto a ser analisado: a responsabilidade de quem oferece o serviço, seja vendedor, fabricante ou marketplace.

“Há um problema do fornecedor quando faz este tipo de comportamento. Ele tem o dever de cuidado, de diligência. O consumidor precisa saber quais são os benefícios e os malefícios que essa aquisição pode ter porque tudo está relacionado à indução a um comportamento. O Código de Defesa do Consumidor fala no direito de reflexão”, lembra Carina Minc, especialista em defesa do consumidor do Procon-SP.

O conselho mais comum, entre os especialistas, para evitar a sensação de economizar gastando provocada pelo spaving, é evitar o impulso. Respirar antes de fazer a compra. De preferência, espere 24 horas.

Se estiver com orçamento apertado, evitar abrir e-mails ou mensagens de WhatsApp de empresas divulgando promoções. Crie uma lista de compras e a siga. Seja rigoroso ao responder à pergunta se precisa realmente comprar aquele produto. Se a conclusão for negativa, não compre.

Era um pensamento que Julius, do “Todo mundo odeia o Chris”, seguiria.

“Sim. Ele é um ícone na nossa sociedade atual”, concorda Carina.

ALEX SABINO / Folhapress

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