Confeiteira, designer e agrônomo lucraram com apostas contra ações da Americanas na véspera do escândalo contábil

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O inquérito sobre o uso indevido de informação privilegiada com ações da Lojas Americanas não envolveu apenas ex-executivos da alta cúpula da varejista. Pela investigação do chamado insider trading realizada na CVM (Comissão de Valores Mobiliários) também passaram nomes de pessoas que não tinham laços com a companhia.

Antes da noite do 11 de janeiro de 2023, quando o escândalo contábil foi revelado, elas apostaram que os papéis despencariam, conseguindo lucros ou evitando perdas de até R$ 1,5 milhão.

Os investidores serão identificados com iniciais na reportagem porque o caso envolve informações sujeitas a sigilo patrimonial e financeiro. As informações estão em relatórios da BSM aos quais a Folha teve acesso —BSM é a associação civil que supervisiona e fiscaliza os mercados organizados administrados pela B3.

Uma das investidoras, K.C.C.M., ganhou R$ 649,4 mil com uma operação conhecida como venda a descoberto, considerada uma das mais arriscadas no mercado financeiro.

Nos dias 9, 10 e 11 de janeiro de 2023, K.C.C.M. montou uma posição vendida a descoberto de 77.500 ações, a um preço médio de R$ 10,98 cada uma. No dia seguinte (12), reverteu a posição vendida, efetuando compra das ações a um preço médio de R$ 2,60.

Para o investidor montar tal operação, a B3 exige uma garantia, que pode ser dinheiro ou ativos em conta, como ações. Pelas regras da Bolsa, ela precisaria ter, no mínimo, R$ 850 mil em carteira para realizar tal operação, fora o adicional de risco.

Ex-funcionária de uma confeitaria no Espírito Santo, K.C.C.M. tem hoje 23 anos e seu filho estuda em escola pública. Em setembro de 2023, ela processou o antigo empregador, fechando acordo para receber cerca de R$ 10 mil.

Procurada pela reportagem, ela disse ter aprendido a operar com um amigo que a orientou a colocar um pequeno valor na conta e começar a negociar.

“Fazia isso constantemente e, às vezes, dava certo, tanto que depois perdi tudo fazendo a mesma operação na Light Energia”, disse por mensagem de WhatsApp. “Só fui uma curiosa e perdi tudo”, disse.

Procurada pela Folha, a corretora Toro, pela qual K.C.C.M. operou, disse que, em respeito ao sigilo bancário, não comenta sobre clientes e operações. “Contudo, ressalta que possui políticas e procedimentos aderentes às exigências de seus reguladores e autorreguladores, aos quais reporta rigorosamente quaisquer operações consideradas atípicas”, disse a Toro em nota.

Os nomes dos investidores foram enviados pela BSM à CVM em janeiro de 2023. Depois, em março, a Procuradoria Federal Especializada da CVM encaminhou os dados ao Ministério Público Federal no Rio em um rol de investigados sobre o eventual uso indevido de informação privilegiada no caso Americanas.

A Folha procurou a CVM em 4 de outubro de 2024 questionando o status da investigação sobre insider trading envolvendo tais investidores sem laços aparentes com a Americanas. Em resposta, a autarquia disse que “não comenta casos específicos”.

No dia 18, a CVM anunciou a abertura de um novo inquérito administrativo para “apurar eventuais irregularidades das negociações com ativos de emissão da Americanas por pessoas naturais e jurídicas sem vínculo com a companhia”.

A abertura da nova investigação foi anunciada no mesmo dia em que a CVM divulgou a conclusão do outro inquérito sobre insider trading na varejista, no qual formulou acusações e abriu processo administrativo sancionador contra oito ex-executivos: os ex-diretores estatutários Miguel Gutierrez, Marcio Cruz, Timotheo de Barros e Anna Saicali, além dos ex-diretores-executivos não estatutários Fabio Abrate, Marcelo Nunes e João Guerra e do superintendente de contabilidade Fellipe Bernardazzi.

Outro investidor que teve os dados analisados, o empresário do ramo de tecidos em Goiás, F.K.T. lucrou R$ 1,46 milhão em operações com opções de venda de ações da varejista, adquiridas em 9 e 10 de janeiro, e desfeitas no dia 12. Procurado pela reportagem, não respondeu.

A Itaú Corretora, pela qual F.K.T. opera, não se manifestou sobre o caso dele. A empresa diz que monitora todas as operações que intermedeia. Entre suas medidas de controle, cita a obrigatoriedade do preenchimento de cadastro detalhado pelos clientes, com dados pessoais e profissionais, como renda e patrimônio com documentos comprobatórios.

Já o designer e promotor de eventos M.V.M.S., de Santa Catarina, lucrou R$ 506 mil. No dia 21 de dezembro, ele comprou 100 mil opções de venda de ações da Americanas a R$ 8,06, posição que liquidou em 12 de janeiro. O movimento chamou a atenção da BSM pela aposta do investidor na queda do ativo e porque representou mudança no perfil de suas operações com opções de ações da Americanas, já que ele negociou quantidade superior ao seu histórico.

Procurado pela Folha, M.V.M.S. disse que o lucro com Americanas foi sorte. Ainda segundo ele, porém, parte do ganho já foi perdida ao reinvestir na Bolsa.

O agrônomo E.S.A.F., do interior de SP, comprou 100 mil opções de venda de AMER3 no dia 9 e reverteu a posição no dia 12, lucrando R$ 722 mil. Conforme os dados da BSM, ele já tinha o perfil de negociar opções, porém o volume dessa operação foi superior ao seu padrão. Procurado pela Folha, E.S.A.F. disse que obteve o ganho com base nos ensinamentos de um professor de análise gráfica que dá dicas em redes sociais.

Entre os que evitaram perdas, a BSM relatou o caso do empresário J.M.C., de Curitiba, que, em um movimento certeiro, vendeu todas as ações da Americanas que tinha na véspera do fato relevante, escapando de um prejuízo de R$ 1,2 milhão. Procurado pela reportagem, J.M.C. diz que teve sorte e que a operação está em linha com sua estratégia habitual de comprar na baixa e vender na alta. A Órama, corretora pela qual operou, foi comprada no fim de 2023 pelo BTG, que não quis comentar.

Outro investidor que evitou prejuízo foi o fluminense S.B., que trabalha no mercado financeiro. Os dados da BSM mostram que, entre 5 e 9 de janeiro, ele se desfez de todos os papéis de AMER3 na sua carteira, salvando R$ 974.228.

À Folha S.B. disse que as informações da BSM são equivocadas e retratam só um curto período de suas operações com as ações da Americanas.

A corretora usada por E.S.A.F. e M.V.M.S. foi a Clear, e a de S.B., a XP, ambas do grupo XP Inc. Procurada pela reportagem, a empresa diz que segue as normas do mercado e colabora com os órgãos reguladores.

“As operações realizadas estavam em conformidade com os perfis de risco e requisitos de garantias dos investidores, não havendo, dentre as informações que disponibilizamos à CVM, quaisquer indícios que apontem para prática de insider trading”, diz a XP Inc.

O MPF diz que não comenta investigações em curso e só irá se manifestar quando a denúncia for oferecida. A Polícia Federal não divulga informações sobre eventuais investigações em andamento. B3 e BSM não se manifestam.

VENDA A DESCOBERTO

Essa estratégia, também conhecida como “short selling”, consiste em apostar na queda das ações. Nela, o investidor se arrisca fazendo uma operação que lhe permite vender um ativo que não tem em sua carteira. Se o preço cai, ele lucra. Mas, se o preço sobe, ele perde

OPÇÃO DE VENDA

A B3 comercializa contratos que dão o direito de comprar ou vender ativos no futuro, a determinados valores, de modo a mitigar riscos de oscilação de preço. Também é possível usá-los para especular sobre a trajetória de preço do ativo. Na opção de venda, o investidor tem o direito de comercializar um determinado ativo a um preço predeterminado. Esse arranjo é mais utilizado por quem prevê queda de preços

Colaborou Rogério Pagnan

JOANA CUNHA E JÚLIA MOURA / Folhapress

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