RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Um rapaz de bermuda e chinelo não teme se queimar, e empina sua moto Honda de cor vermelha com maestria em meio às chamas que brotam do asfalto. Atrás dele, outro menino estimula o fogo com o que parece ser gasolina dentro de uma garrafa pet. A fotografia de Melissa de Oliveira retrata o grau, prática que se espalhou pelas comunidades de todo o Brasil.
A atividade, exercida especialmente por homens jovens, consiste em se equilibrar na roda traseira e deixar a dianteira no alto, exibindo as manobras individualmente ou em grupo para uma plateia. Oliveira, que agora exibe seu trabalho no Panorama da Arte Brasileira, a principal mostra de arte contemporânea do país depois da Bienal de São Paulo, foi reconhecida no meio artístico quando decidiu fotografar um evento de grau em 2020, no Morro do Dendê, localizado na Ilha do Governador, zona norte do Rio de Janeiro.
Nos subúrbios cariocas, ela conta, o encontro de motoqueiros foi batizado de Grau e Corte. “Cada comunidade tem uma turma do grau, com sua bandeira e uniforme. É quase como se fosse um time de futebol”, diz Oliveira, da varanda de sua casa. Nascida e crescida no Dendê, hoje ela vive em outra comunidade carioca, com acesso mais fácil ao centro da cidade, e é representada pela galeria Nonada.
“Eu nunca tinha pisado numa galeria de arte. Na minha primeira experiência, não foi convidativo, porque era uma linguagem que eu não conhecia, simplesmente porque eu não pertencia àquele mundo. É um pouco intimidador”, lembra. “Eu não saia da comunidade para nada, não terminei o ensino médio e não tinha o hábito de visitar exposições. Para sair da Ilha, o trajeto é muito complicado.”
Aliás, excepcionalmente durante o Grau e Corte, que têm edições durante o ano todo, pessoas de comunidades dominadas por facções opostas podem visitar livremente territórios inimigos para prestigiar as manobras. O lema, diz Oliveira, é “o grau não tem facção”.
“É tudo feito com muita união. A galera mostra que treinou por vários meses, durante o ano todo para estar naquele evento”, diz Oliveira.
Empinar a moto, porém, é considerado uma infração gravíssima pelo artigo 244 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que proíbe a atividade. A norma suscitou movimentos de protesto por parte de praticantes do grau, entre eles o “244 Não é Crime”. Para Oliveira, a lei é uma forma de estigmatizar a atividade. “[o grau] é muito marginalizado, como vários movimentos que vêm da favela ou de periferias, como a capoeira e o baile funk.”
O nome Grau e Corte não é por acaso. Além das manobras, os homens exibem cortes de cabelo de vários tipos. “É o balé dos homens”, diz Oliveira. “É um universo muito masculino. Além da bandeira do movimento, eles estão ali falando sobre exibicionismo e sexualidade. É um evento super performático.”
A investigação da masculinidade partiu, de certa forma, da análise da própria identidade da fotógrafa. Lésbica e desfeminilizada, a artista conta que sempre gostou de cortar o cabelo como os homens. “Não faço maquiagem ou pinto a unha. A minha vaidade é cortar o meu cabelo.”
Essa característica deu a Oliveira passe livre para frequentar o Grau e Corte ou barbearias sem ser sexualizada, ainda que muitas vezes fosse a única mulher no recinto. Ser aberta quanto a sua sexualidade também não foi um problema.
“Os meninos me tratam de igual para igual. Quando criança eu gostava de jogar sem camisa com eles. Sempre foi muito natural. Não posso dizer que é igual para todo mundo, que todas as pessoas LGBTQIA+ na favela têm a mesma experiência, mas eu passei por preconceito fora da comunidade, nunca dentro.”
Foi a aproximação com os meninos que a levou a fotografar suas manobras ainda com o celular. Quando o aparelho foi roubado, pediu que a mãe desse a ela uma câmera em seu lugar. Enquanto isso, foi aprendendo mais sobre fotografia em aulas no YouTube e pesquisando sobre outros fotógrafos na internet.
Se nas classes média e alta a preocupação de homens heterossexuais com a aparência ainda é, muitas vezes, visto como um problema de masculinidade, na periferia o embelezamento é sinal de cuidado, e o desleixo pode ser perigoso.
“É um movimento que está acontecendo nos últimos anos, dos meninos começarem a fazer sobrancelha, usarem brincos, fazer unha e desafiar noções de masculinidade. Para os garotos pretos, por exemplo, é muito importante que na rua você esteja bem arrumado, para não ser parado em abordagens.”
O cabelo é um dos principais símbolos de vaidade e identidade masculina dentro das periferias. “Demarca de onde você vem, a sua origem, para o bem e para o mal. Muitas vezes é um termômetro para quem a polícia vai parar”, diz.
Ao mesmo tempo, as barbearias são, dentro das comunidades, uma alternativa para jovens negros que muitas vezes não conseguem ter uma perspectiva no mercado de trabalho formal. “É uma maneira de empreender sem necessariamente ter terminado a escola. Uma alternativa muitas vezes até para não entrar no crime.”
Alguns dos penteados mais populares são reflexos platinados no cabelo, mechas coloridas e degradês laterais com desenhos variados, como logos de marcas da Nike e Lacoste, apropriação de símbolos ligados ao poder de compra negado à juventude de baixa renda. “Para mim, isso é ser punk. É uma galera muito ousada”, diz a artista.
A quantidade de cortes de cabelo existentes, segundo ela, não combinava com a ausência de registros dos estilos. “Sinto falta de um acervo, de documentos e fotos da minha comunidade”. Aquelas que encontrou datavam dos anos 1970, clicadas por fotógrafos pautados por algum jornal ou revista.
Diferente de suas fotografias do Grau e Corte, os cliques de Oliveira que retratam a variedade de cabelos estilizados são feitos com luz controlada, em fundo neutro. Fotografar surgiu como maneira de desafiar o imaginário que predomina sobre as favelas, e seus cotidianos. “[A comunidade] não é sempre um lugar de violência e miséria. Estamos vivendo e produzindo um monte de coisa linda.”
ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress