SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A política de cotas voltada a pessoas trans e travestis avança nas universidades públicas brasileiras. Só no último mês, Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), UFF (Universidade Federal Fluminense) e UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) decidiram destinar vagas ao grupo a partir de 2025, na graduação e na pós.
Elas se uniram a outras 15 instituições do país nessa política, apoiada pelo MEC (Ministério da Educação) –mesmo as unidades de ensino tendo independência constitucional para tal decisão.
Para a pasta de Camilo Santana, a adoção de um sistema de cotas específico para pessoas transgênero e de outros grupos LGBTQIA+ é ferramenta importante e deve ser aprofundada.
No entanto, afirma o ministério, a criação de qualquer política de ação afirmativa deve estar amparada em estudos, “de modo que seja possível garantir não apenas o ingresso na educação superior, mas a permanência das pessoas beneficiadas nos cursos e o acesso ao mercado de trabalho após a sua conclusão”.
Por isso, as universidades que adotaram o sistema também criaram grupos de trabalho para avaliar seus efeitos a longo prazo.
Em geral, as reitorias explicam a criação das cotas específicas para essa população com dados sobre pessoas trans e travestis no Brasil.
Segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), estima-se que cerca de 70% da população trans e travesti brasileira não concluiu o ensino médio e que apenas 0,02% encontra-se no ensino superior. Outra informação divulgada é o grupo ser maioria na prostituição. Isso ocorreria pela falta de oportunidades no mercado de trabalho.
Bruna Benevides, presidente da organização, afirma ainda que as cotas fazem parte de um contexto maior de enfrentamento à violência sistemática do estado contra trans e relevam o reconhecimento da gravidade da situação.
Levantamento da Antra mostra que foram registrados 1.057 homicídios de pessoas trans e travestis em território nacional de 2017 a 2023. No comparativo mais recente, entre 2022 e 2023, houve um aumento de 10,7% no número de assassinatos, passando de 131 para 145.
“Nós pedimos por isso desde 2001. A educação é transformadora, sabemos do poder dela para mudar realidades”, diz. “Porém, não podemos parar por aqui. As universidades precisam criar mecanismos integrais nessa chegada, pensando na proteção, segurança e acolhimento”, continua.
A Antra, inclusive, faz esse apelo numa nota técnica divulgada em seu site. No texto, é ainda defendido um sistema de heteroidentificação para deferir ou indeferir as autodeclarações. Isso, explica Benevides, evitaria questionamentos preconceituosos do tipo “qualquer um pode fingir ser trans”.
Todas as instituições estão adotando a prática.
Avanço nas federais, lentidão nas estaduais
Das 17 universidades públicas com reservas para trans, 13 são federais e apenas quatro são estaduais. A maioria está no Nordeste, inclusive a precursora UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia), que desde 2017 destina uma vaga em cada curso a essa população.
Nada disso, porém, foi conquistado sem oposição. Ações contra a política se acumulam na Justiça, mas as decisões têm sido majoritariamente favoráveis à continuidade.
Em São Paulo, apesar das iniciativas de Unifesp e UFABC (Universidade Federal do ABC), as duas maiores instituições, USP (Universidade de São Paulo) e Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) –sob responsabilidade do governo paulista– adiaram por anos discussão sobre o tema, até cobrança forte do movimento estudantil.
Durante greves realizadas em 2023 em ambos os locais, alunos condicionam a instauração da política afirmativa ao fim dos movimentos.
A Unicamp agiu rapidamente. Em maio deste ano, foi criado um grupo de trabalho e iniciadas consultas públicas, com previsão de encerramento ao fim deste mês. Os membros trabalham atualmente na elaboração de uma proposta que seja viável tanto para a universidade quanto para o movimento trans.
Segundo o diretor da Comvest (comissão de vestibulares da Unicamp) e coordenador do grupo de trabalho, José Alves de Freitas Neto, o documento vai propor que a seleção seja feita a partir do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).
Já na USP, a realidade é outra. Lá, um grupo de trabalho ainda não foi formado, e estudantes pressionam pela aceleração do processo. Membros do DCE (Diretório Central dos Estudantes) fazem uma caravana por cotas trans nos cursos. A ideia é promover uma série de atividades para debater o tema com a comunidade universitária e captar apoiadores.
“Estamos dando bastante força para a ideia. Achamos que o momento está sendo de uma onda de aprovação de cotas trans e queremos surfar nela”, diz Ekop Novis dos Santos, 20, estudante da Faculdade de Direito e articulador da caravana.
Hoje, há um projeto de lei sobre a pauta no Congresso. Ele foi protocolado pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) em julho de 2023 e pede a reserva de 5% das vagas de cada curso de graduação nas universidades federais a trans e travestis.
A proposta aguarda designação de relator na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial há 14 meses.
BRUNO LUCCA / Folhapress