Crédito de biodiversidade é habilitado em seringal com disputa fundiária e suspeita de coação

MANAUS, AM (FOLHAPRESS) – Um projeto de geração de créditos de biodiversidade na amazônia, mais especificamente em um seringal na região de Sena Madureira (AC), foi certificado por uma empresa especializada e validado por um instituto apesar da existência de uma disputa fundiária no lugar, que opõe posseiros e ocupantes tradicionais do seringal ao empresário que tem registro de propriedade das terras.

Agricultores, ribeirinhos e extrativistas dizem ter assinado documentos sob pressão e coação –parte deles sem compreensão sobre o que estava escrito nos contratos, por não saberem ler, segundo a Defensoria Pública do Acre.

Em outubro, o núcleo de cidadania da Defensoria Pública esteve no seringal Porongaba e começou a reunir documentos para o ingresso de ações de usucapião a favor de moradores da comunidade.

Os defensores dizem que atuarão ainda em duas frentes na Justiça do Acre: pedido de anulação de acordos de posse feitos entre agricultores e o empresário apontado como dono do imóvel rural, em razão da destinação de fatias de terra menores do que os espaços ocupados pelos posseiros, e ação contra reintegração de posse decidida a favor do fazendeiro.

Mesmo com a disputa em curso, e com acusação de parte dos ocupantes do seringal de que estariam sendo expulsos da área, o Porongaba foi habilitado para geração e oferta de créditos de biodiversidade.

Esses créditos são o novo filão na área de monetização da conservação ambiental. São muito semelhantes aos créditos de carbono, mas remunera-se a garantia da biodiversidade, não a retenção do carbono.

Créditos de biodiversidade não são regulamentados, e a discussão ainda engatinha, como a feita na COP16, a conferência de biodiversidade da ONU (Organização das Nações Unidas) realizada em outubro e novembro em Cali, na Colômbia.

Mesmo assim, há empresas no Brasil atuando na certificação de créditos, assim como já existe uma plataforma com divulgação desses títulos.

Uma das principais certificadoras é a Neocert, responsável pela validação de sete projetos de crédito de biodiversidade na amazônia. A plataforma é alimentada pelo Instituto Life, que atua no desenvolvimento de normas de certificação e no credenciamento de certificadores. O projeto do seringal Porongaba foi validado pela Neocert e pela Life.

A empresa responsável pelo desenvolvimento do projeto dos créditos é a Yaco, que obteve certificações para mais três seringais no Acre. O dono das terras do Porongaba, segundo certidão em cartório em Sena Madureira, é Junior Galvane Batista.

Junior é filho do empresário Moacir Crocetta Batista, que teve créditos de biodiversidade validados em outro imóvel rural, a Fazenda Cabaça 1 e 2, em nome de uma empresa de Crocetta, a M.I. Incorporadora. A fazenda fica na região de Borba, leste do Amazonas.

A Folha de S.Paulo mostrou em reportagem publicada no último dia 10 que a M.I. foi multada duas vezes, e teve duas áreas embargadas na Fazenda Cabaça 1 e 2, por desmatamento ilegal. As multas foram aplicadas pelo Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), que apontou que o desmatamento sem autorização objetivou “pastagens e benfeitorias para pecuária”.

Crocetta e uma segunda empresa do grupo foram multados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) em 2022, também por desmatamento ilegal. Ao todo, as cinco multas aplicadas –incluídas as lavradas pelo Ipaam– somam R$ 473 mil.

Após serem contatados pela reportagem, Life e Neocert comunicaram a suspensão da certificação dos créditos de biodiversidade em Borba (AM). O empresário disse que as multas são “descabidas” e estão sendo contestadas.

Em nota, o instituto Life afirmou, em relação à certificação de créditos no seringal Porongaba, no Acre, que “todos os certificados emitidos e que podem ter alguma relação com as denúncias aqui discutidas estão em processo de revisão a pedido do instituto”.

A Neocert disse, em nota, que documentos fundiários demonstram regularmente a propriedade das terras. “Vimos que famílias de comunitários tradicionais tiveram seus direitos de posse reconhecidos pelo proprietário, que titulou e doou terras aos posseiros tradicionais.”

A Yaco e a M.I. afirmaram que o proprietário da área do seringal reconheceu formalmente os direitos de posse da comunidade tradicional, por meio de título de doação de 3.000 hectares a 42 famílias. Crimes ambientais são cometidos por grileiros e invasores, o que levou a área desmatada no seringal a 12,72% em 2024, conforme nota das empresas. Em 2005, eram 3,16%, disseram.

Segundo lideranças que buscaram a Defensoria Pública do Acre, há 70 famílias no seringal. Parte delas está há décadas no lugar, outras chegaram há poucos anos, a partir da compra de acordos de posse em poder de antigos ocupantes.

São essas famílias tradicionais que garantiram a preservação da floresta ao longo das décadas, segundo os posseiros, em razão da importância da castanha, da seringa, da caça e de pequenas roças para a subsistência dos moradores.

Conforme os relatos dos moradores, a pressão sobre as famílias ganhou força em 2021, quando teve início um projeto de créditos de carbono no seringal. Acordos de posse teriam sido rejeitados numa reunião, e foram aceitos individualmente, por um grupo de cerca de 40 famílias, a partir de uma ofensiva do grupo do dono do imóvel rural com registro em cartório, relataram posseiros.

O seringal tem 31.183 hectares, segundo a certidão registrada em cartório. O projeto de créditos de biodiversidade envolve 2.690 hectares, conforme o instituto Life.

“O seringal Porongaba é uma comunidade remota que está passando por transformações significativas”, diz o instituto na plataforma de divulgação dos créditos. “A partir das iniciativas do projeto implementado de REDD+ [referente a créditos de carbono], a área recebeu melhorias na conectividade com a instalação de uma torre de comunicação para internet e kits de energia solar.”

Segundo o defensor Celso Araújo Rodrigues, coordenador de cidadania da Defensoria Pública do Acre, o órgão foi procurado por moradores do seringal, que alegaram estar sendo expulsos pelos proprietários.

“Fomos à comunidade. As pessoas estavam sendo retiradas da área, e citaram ameaças e assinatura de documentos sob pressão, muitos sem saberem ler”, disse o defensor. “Vamos mover ações para anulação de reconhecimento de áreas menores do que essas pessoas têm direito.”

EMPRESAS DEFENDEM PRÁTICAS

Yaco e M.I. afirmaram que o reconhecimento do direito de posse no seringal permitiu que a comunidade tivesse acesso a financiamentos e programas públicos de fomento a atividades rurais.

“A regularização fundiária realizada pelo proprietário foi um ato antecipado de reconhecimento de direitos”, disseram as empresas. “O proprietário adquiriu o seringal há quase três décadas, e nesse tempo todo nunca promoveu o desmatamento de nem um hectare sequer. Os novos invasores, vindos de outras regiões, é que estão desmatando extensas áreas de florestas.”

O instituto Life afirmou que a metodologia desenvolvida exige cumprimento rigoroso da legislação vigente. Entre os critérios que devem ser levados em conta estão o acompanhamento de pendências jurídicas e comprovação de direitos de uso e posse da terra, disse.

A Neocert, por sua vez, afirmou que incluiu instituições locais em consulta pública e que nenhum indício foi levantado. “Havia processos de reintegração de posse sobre invasores, com ganho de causa para a empresa, citando inclusive desmatamentos realizados por invasores.”

VINICIUS SASSINE / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS