SANTIAGO, CHILE (FOLHAPRESS) – Em agosto de 1976, três anos após o início da ditadura militar no Chile, Ninoska Henriquez, 9, produziu uma carta com destinatário pouco usual. “Sei que a senhora é uma pessoa muito boa com as crianças chilenas, vi as cenas na televisão”, escreveu a menina a Lucía Hiriart, esposa do general Augusto Pinochet.
As primeiras linhas do texto introduziam um pedido à primeira-dama do regime: ajuda para encontrar seus avós, María Olga Flores Barraza e Bernardo Araya Zuleta –este, ex-deputado comunista–, que haviam sido levados pela Dina, a máquina de repressão do regime. “A senhora também é mãe e avó; peço que me veja como uma neta do Chile que sofre muito.”
A esposa do ditador respondeu cordialmente, sem dar esperanças. Com a família ameaçada, a menina partiu para o exílio, e seus avós são, até hoje, desaparecidos políticos. A carta, em exposição no Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago, virou símbolo de uma das faces da ditadura: o impacto na vida de crianças e jovens.
Segundo dados oficiais, 153 menores foram executados políticos da repressão militar ou assassinados em protestos. Outros 40 são presos desaparecidos. E 2.200 foram presos e torturados de 1973 a 1990.
Além das então crianças e adolescentes vítimas diretas da repressão, há os que experienciaram as sequelas psicológicas de um dos regimes mais brutais do século 20 no Cone Sul. São adultos que, no cinquentenário do golpe, relatam terem tido suas infâncias interrompidas de forma brutal pela ditadura de Pinochet.
Em meio à efusão de livros recém-publicados no Chile para marcar a data, um se dedicou a coletar essas histórias –“50 años, 50 historias — Los niños y adolescentes de la dictadura”, escrito por três jornalistas especializados no período e editado pela chilena LOM.
Como o título indica, a obra compila 50 relatos de pessoas que, à época da ditadura, eram crianças ou adolescentes. São hoje psicólogos, professores, atores e políticos que muitas vezes tiveram de deixar seu país e cujos pais, irmãos e avós foram levados pelos militares.
Entre as histórias está a de Carolina Tohá, hoje ministra do Interior do governo de centro-esquerda de Gabriel Boric. “[Com o golpe], mesmo antes que matassem meu pai, começou a ocorrer algo: teve fim o mundo que eu conhecia (…) Tornei-me uma menina hiperconsciente, super-responsável. Na realidade, deixei de ser criança.”
Carolina tinha 8 anos à época, quando seu pai, José Tohá González, que havia sido ministro do Interior e da Defesa do governo socialista de Salvador Allende, foi detido e morreu em consequência das torturas. Com a mãe, ela partiu para o exílio no México.
“São meninos e meninas que, num dia, acreditavam no Papai Noel e, no outro, deram-se conta de que o pai ou a mãe jamais voltariam”, diz Fabiana Rodríguez-Pastene, uma das autoras. O trio afirma que o Estado fez pouco por essas pessoas, vítimas indiretas da repressão.
“Como país, deveríamos reconhecê-los, contar suas histórias, num esforço para evitar que isso ocorra com outras crianças e adolescentes”, acrescenta Karen Trajtemberg, também coautora.
A educação, dizem os três jornalistas, seria peça-chave. “Seria muito bom que essas historias estivessem no currículo educacional chileno”, afirma Manuel Délano. “Atrás de cada número de vítimas há uma pessoa, uma trama com muitos componentes, do drama à resiliência e à reconstrução de si mesmo.”
Longe de ser obsoleto, o tema continua repercutindo. No mês passado, um tribunal de apelações de Santiago decidiu processar dois ex-agentes da Dina, Miguel Krassnoff Martchenko e Rolf Wenderoth Pozo, pelo sequestro de Macarena Aguiló Marchi, à época com apenas 3 anos de idade.
Macarena é uma das que concedeu seu relato ao livro. Há 48 anos, militares a levaram primeiro à Villa Grimaldi, um dos principais centros de tortura do regime localizado na comuna santiaguina de Peñalolén, e depois a um centro operado por carabineiros –polícia local– para pressionar seu pai, Hernán Aguiló, um militante do MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária) então na clandestinidade, a se entregar.
No Brasil, as cifras do impacto sobre menores de idade da ditadura militar que vigorou por 21 anos, de 1964 a 1985, são escassas. O regime brasileiro sequestrou bebês, crianças e adolescentes, mas não há um balanço nacional das violações entre esse grupo.
O cenário é fruto da má documentação sobre a repressão, do “mar de irregularidades” cometidas pelos militares e de um “erro de interpretação”, diz o ex-deputado estadual paulista Adriano Diogo (PT), que presidiu a Comissão da Verdade do estado de São Paulo.
“No Brasil, apenas consideramos membros da resistência à ditadura aqueles que eram de alguma organização política, como se os que faziam outras formas de movimento social não fossem da resistência”, afirma. “Nisso reside um erro de estatística absurdo, que ignora os possíveis abusos cometidos contra filhos de camponeses, índigenas e moradores de favelas.”
MAYARA PAIXÃO / Folhapress