SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Mudam o caminho quando veem a gente. Sentem um ódio tão grande que eu tenho medo de levar uma surra ou ser queimado vivo enquanto durmo”, conta Alexandre Fernandes, 45, sobre o que acontece quando pedestres e motoristas passam por ele nas ruas da Mooca, bairro da zona leste que faz divisa com o centro da cidade de São Paulo.
Fernandes faz o relato numa roda de conversa com outras 20 pessoas em situação de rua que aguardavam doações de roupas, calçados e creme dental. Quase todos tinham depoimentos sobre insultos, ameaças e agressões.
O encontro ocorre na igreja São Miguel Arcanjo, onde dias antes um homem deixou um bilhete com ofensas ao padre Júlio Lancellotti, 74, conhecido pela militância em defesa da população de rua.
Na vizinhança, o religioso é frequentemente hostilizado. Críticos atribuem a ele a responsabilidade pela degradação do bairro de classe média.
A duas quadras da paróquia, frequentadores e proprietários de diferentes tipos de comércio dizem temer que a Mooca se torne o novo endereço da cracolândia, como é chamada a concentração de dependentes químicos na região central paulistana.
Esse temor ganhou força nos últimos anos, desde que o fluxo de usuários passou a se deslocar em meio à intensificação das ações do poder público para reprimir o comércio e o consumo de entorpecentes na região central, gerando uma série de conflitos com proprietários e locatários de imóveis.
Numa barbearia, um comerciante mostra a garagem arrombada há alguns dias, de onde furtaram peças de um Chevrolet Opala. Sem autorizar a publicação de seu nome, ele diz que criminosos infiltrados entre os atendidos pela obra social de Lancellotti são responsáveis pelos delitos.
Circula na rua boato de que um albergue será instalado no local. A afirmação é falsa, mas ganhou força na internet e motivou um abaixo-assinado contra o suposto equipamento e até o apedrejamento do imóvel que, na verdade, oferecerá cursos de capacitação profissional.
Existem 5.811 pessoas em situação de rua ou em albergues no território da Subprefeitura da Mooca composto pelos distritos Água Rasa, Belém, Brás, Mooca, Pari e Tatuapé. Isso representa quase 20% dos moradores que estão nesta condição na cidade. O número só é menor do que o contingente registrado na Subprefeitura Sé, com 12.851, ou 40% do total, segundo o Censo da População em Situação de Rua de 2021, o mais recente disponível.
Algumas dessas pessoas relatam, de fato, terem deixado a região central da cidade para escapar da violência praticada por policiais e seguranças privados. “Pagam para bater na gente”, diz Ronaldo de Freitas, 41. Ele levanta a barra da calça e mostra hematomas e cortes na perna.
Além da obra social de Lancellotti, há 28 equipamentos públicos de acolhimento distribuídos entre Mooca, Belém e Brás, que são próximos. Somente em agosto, 7.700 pessoas passaram por essas unidades, segundo a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social da prefeitura.
É na divisa entre Belém e Mooca, num trecho de 500 metros de vias próximas a um desses núcleos, que está a principal concentração de pessoas em situação de rua da localidade. Muitos acampados em barracas ou acomodados em cabanas improvisadas com madeira, tecido e plástico. O local já é apelidado de “cracolândia da Mooca”.
A área faz parte de uma zona de eixo de transporte público onde a legislação urbanística da cidade oferece estímulos para o mercado imobiliário construir. Poucos metros adiante, perto da estação Belém do metrô, a reportagem contou 11 prédios residenciais em construção ou recém-concluídos.
O avanço da frente imobiliária acirra hostilidades contra quem não possui teto, diz Lancellotti.
Claudinei Campagni, 56, há dez anos dono de um pequeno escritório de corretagem de imóveis no bairro, diz que a atuação do padre é vista como uma ação para promoção de partidos de esquerda. “O trabalho social é admirável, mas as reclamações que ouço aqui são sobre as escolhas políticas”, conta o corretor.
Wilson Aliano, 72, disse à Folha que questões políticas o levaram a deixar o bilhete na porta da paróquia de Lancellotti. Ele afirmou que não tinha a intenção de fazer ameaças, mas queria reclamar que o imóvel, destinado ao culto religioso não deveria ser usado para o que ele considera fins políticos “de qualquer ideologia”, disse. “Nunca odiamos os pobres, de jeito nenhum.”
Pablo Almada, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, considera que certos conteúdos distribuídos pela internet incentivam um aumento da tensão e, por vezes, até mesmo atitudes violentas.
“Publicar uma foto numa rede social com a frase onde a cracolândia estará amanhã pode incentivar um comportamento agressivo de uma classe média que não quer esse problema na sua porta”, afirma ele.
Metade dos paulistanos diz acreditar que há cracolândias em seus bairros, mostrou pesquisa Datafolha com 1.092 pessoas entrevistadas no município nos dias 29 e 30 de agosto.
Questionada sobre a possibilidade da mudança da cracolândia para a Mooca, a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) afirmou que o fluxo de usuários de crack está concentrado próximo ao bairro da Luz, na região central, e que sua movimentação possui dinâmica própria.
Relator do grupo de trabalho de enfrentamento ao discurso de ódio do Ministério dos Direitos Humanos do governo Lula (PT), o advogado Camilo Onoda Caldas atribui a crise no bairro à omissão do poder público.
Professor de direito da Universidade São Judas, Caldas lecionou no campus instalado na Mooca e acompanhou de perto a escalada da tensão na região.
“É uma situação histórica, que vem se acumulando pelo descaso que criou um senso de urgência que é difícil de resolver sem uma política pública”, diz Caldas.
ESTADO E PREFEITURA DIZEM APURAR AGRESSÕES CONTRA POPULAÇÃO DE RUA
A gestão Ricardo Nunes afirmou, em nota, ter realizado em agosto 1.589 abordagem no território da Mooca por meio de orientadores socioeducativos. Também disse que a GCM (Guarda Civil Metropolitana) presta apoio para mediar e evitar possíveis conflitos e que não compactua com desvios de conduta e que toda denúncia é devidamente apurada.
Já a Secretaria de Segurança Pública, do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirmou que as forças policiais atuam na região, onde crimes contra o patrimônio caíram 3,19% de janeiro a julho deste ano, passando de 752 para 728 casos. Além disso, foram presos e apreendidos 1.329 criminosos no período.
Flagrantes de maus-tratos contra pessoas em situação de rua devem ser comunicados pelo 190 ou nas delegacias de polícia e qualquer denúncia de desvio de condutas em abordagens da PM pode ser formalizada na Corregedoria da Polícia Militar, disse o governo estadual.
CLAYTON CASTELANI / Folhapress