LOS ANGELES, EUA (FOLHAPRESS) – As prateleiras de desodorantes, sabonetes líquidos e cremes de barbear estão trancadas à chave, e é preciso chamar um atendente por um botão para ter acesso aos produtos. “É muito roubo”, explica a funcionária na Target, uma das maiores lojas de departamento dos Estados Unidos.
“Acontece todo dia, e o dia todo. Vejo uns 20 roubos por dia. Só piora”, continua a funcionária de uma unidade da loja em West Hollywood, em Los Angeles. “Eles põem tudo na mochila, vão embora sem pagar e vendem [os artigos] nas ruas, na internet.”
Uma onda de furtos atinge lojas, supermercados e farmácias da Califórnia desde a pandemia de Covid-19 uma crise entre muitas que vêm manchando a reputação do estado ensolarado.
A maior parte desses problemas é, de certa forma, fruto da associação entre desigualdade social e políticas mal sucedidas. Estado mais rico e populoso dos EUA, a Califórnia tem um PIB de US$ 3 trilhões (cerca de R$ 14 trilhões), o dobro do brasileiro. Mesmo sendo a quinta economia no mundo, a região sofre com o aumento de pessoas em situação de rua em suas principais cidades, ainda que tenha um orçamento anual de US$ 12 bilhões (R$ 58 bilhões) para ajudar as mais de 160 mil pessoas sem moradia.
O alto custo de vida ainda desencadeou um êxodo: 700 mil pessoas que moravam lá se mudaram para outros estados entre 2020 e 2022. “Há muita coisa positiva na Califórnia, mas uma população cada vez menor é sinal de que há algo errado. As pessoas sentem que não podem ter uma vida boa aqui”, diz Eric McGhee, pesquisador do Instituto de Políticas Públicas da Califórnia.
A chegada do verão trouxe de volta os incêndios após um inverno rigoroso marcado por alagamentos e deslizamentos. É um desafio ambiental doloroso para um estado que se gaba de ter as políticas mais ambiciosas do país para o setor uma delas é fazer com que, até 2035, todos os carros e caminhões vendidos na região tenham emissão zero de carbono.
“O sucesso econômico da Califórnia foi construído em cima da exploração dos recursos naturais e da mão de obra de trabalhadores de baixa renda”, diz Richard Walker, professor emérito de geografia da Universidade da Califórnia em Berkeley.
“As crises da Califórnia não são simplesmente resultado de azar ou políticas ruins. São produto de um conjunto de arranjos políticos e econômicos que privilegiaram certos interesses”, continua Walker, autor de diversos livros sobre o estado.
Enquanto a Califórnia queima com temperaturas recordes, lojas precisam trancar com correntes as portas de seus freezers. Foi o que aconteceu na semana passada num mercado de San Francisco cujo gerente se cansou dos furtos diários de sorvete e pizza congelada.
“A tendência é o surgimento de mais guardas armados em frente às lojas, o que ninguém quer”, diz Rachel Michelin, presidente da Associação de Varejistas da Califórnia (CRA). “Mas precisamos proteger nossos funcionários e clientes. Infelizmente, há gente na Califórnia mais interessada em proteger criminosos do que cidadãos que cumprem a lei.”
Michelin se refere a um plebiscito de 2014 que elevou de US$ 450 para US$ 950 ou de R$ 2.650 para R$ 4.550 na cotação atual o valor de mercadorias roubadas que constituem “pequenos furtos”. Apesar de punível com até um ano de cadeia, o crime é de menor gravidade, o que dificulta prisões, sem contar a política de fiança a zero dólar para delitos do tipo.
O objetivo do plebiscito era ajustar o valor da legislação de acordo com a inflação e reduzir o número de pessoas encarceradas por crimes não violentos. Dezenas de estados possuem medidas parecidas (no Texas, o limite é US$ 2.500, ou cerca de R$ 12 mil), mas Los Angeles e San Francisco lideram o ranking nacional de furtos da Federação Nacional de Varejistas desde 2018. Em 2021, casos do tipo subiram 30% e 40% em L.A. e San Francisco, respectivamente.
Os furtos estão levando ao fechamento de lojas de grande porte, especialmente em San Francisco. As farmácias Walgreens já desistiram de mais de 20 unidades nos últimos anos, enquanto o supermercado Whole Foods e a loja de departamento Nordstrom anunciaram fechamentos neste ano citando preocupação com a segurança de seus funcionários.
Enquanto isso, em Los Angeles, que gasta US$ 1 bilhão, ou cerca de R$ 4,8 bilhões por ano, para conter a crise dos sem-teto, o problema está longe de uma solução. Segundo a Autoridade de Serviços para Desabrigados de Los Angeles (LAHSA), a população em situação de rua na cidade aumentou 10% em relação ao ano passado, totalizando 46 mil pessoas (no condado de Los Angeles, são 75 mil).
“O aumento faz parte de uma tendência nacional e regional. Sugere que a crise de moradia e o fim das proteções da época da Covid tiveram consequências”, diz Wendy Greuel, presidente da comissão da LAHSA. “A boa notícia é que temos lideranças capazes de resistir a isso.”
A tal liderança é a nova prefeita, Karen Bass, que nos primeiros seis meses de administração período não contemplado pelo relatório da LAHSA, cujos dados foram coletados em janeiro, afirmou que mais de 14 mil pessoas foram transferidas das ruas para moradias permanentes ou temporárias através de um novo programa, uma rede de apartamentos e hoteis com serviços para a população.
Mas parte dos desabrigados evita projetos do governo devido a uma série de fatores. Um deles é o envolvimento com drogas, que atinge cerca de 65% da população em situação de rua.
A novidade, assim, são acampamentos de trailers, em vez de tendas, como um que se formou em uma avenida praticamente sem pedestres perto de Hollywood. Dezenas de veículos em estados precários ficam estacionados ali 24 horas por dia, tendo os portões dos estúdios da Warner Bros. como vizinhos de um lado e, do outro, os gramados impecáveis de um cemitério onde estão enterrados Fritz Lang, Carrie Fisher e Ronnie James Dio.
Em outra via do complexo da Warner, roteiristas em greve fazem piquetes diários há quase três meses. A última greve, em 2007, durou cem dias e trouxe prejuízos de bilhões de dólares para diversos setores da cidade que dependem das produções, como turismo e catering. No momento, são 150 mil membros dos sindicatos de atores e roteiristas sem trabalho, lutando contra estúdios e empresas de tecnologia por contratos mais justos.
Para alguns críticos, as crises da Califórnia são consequência de quase três décadas de políticas liberais. Desde 1991, o estado elege governadores democratas, com exceção do período de Arnold Schwarzenegger (2003-2011), um republicano moderado que, apesar de vetar legislação a favor do casamento homossexual, fez avanços na legislação ambiental.
Mas para Walker, o professor de geografia de Berkeley, elas têm origem na desigualdade social, resultado direto de um sistema político que protege os interesses dos ricos e poderosos. Gentrificação é o principal problema das grandes cidades, causando uma reorganização da malha urbana com a chegada de profissionais ricos que levam os preços às alturas e à saída dos locais.
“Não temos escassez de oferta, e sim uma demanda descontrolada”, diz ele. O pesquisador diz acreditar que uma das soluções para as crises seja uma regulamentação mais dura das indústrias da região, seja no streaming, no transporte ou no mercado imobiliário o estado abriga, afinal, o Vale do Silício, lar de empresas de tecnologia como Apple e Meta.
Walker cita o exemplo Airbnb, cujas diárias de curta duração fizeram sumir do mercado quase metade das moradias da sua cidade, localizada no subúrbio de San Francisco. “Eu amo esse lugar, é minha casa. Quero que reconheçam o quão fantástico e bem-sucedido ele é. Mas como podemos ignorar todos esses sem-teto? É uma falha moral de primeira ordem”, diz.
FERNANDA EZABELLA / Folhapress