Crônicas de Pedro Lemebel resgatam verve radical da comunidade LGBTQIA+

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quem foi à avenida Paulista em um domingo ensolarado de junho viu uma multidão dançante coberta pelo manto do arco-íris. Era a Parada LGBTQIA+ de São Paulo, um dos maiores eventos do mês do Orgulho no mundo inteiro. Uma celebração do amor e da igualdade, na visão de seus organizadores e patrocinadores.

Se estivesse vivo e de passagem pela capital paulista, o artista chileno Pedro Lemebel talvez até ficasse um pouquinho para apreciar aqueles corpos joviais reluzindo sob o sol outonal, mas provavelmente voltaria logo aos seus afazeres. Logo ele, um dos maiores ícones LGBTQIA+ da América Latina, deixara de frequentar Paradas por causa do caráter excessivamente comercial que elas adquiriram com o passar do tempo.

Não foi assim sempre. As Paradas nasceram como um protesto político para relembrar a revolta de Stonewall, levante contra a violência policial protagonizado por gays, lésbicas e pessoas trans de Nova York em 28 de junho de 1969. Em São Paulo, a Parada só seria organizada em 1997, quase três décadas após o surgimento do evento nos Estados Unidos.

O próprio Lemebel chegou a participar da Parada de Nova York em 1994, na qual fez uma célebre performance portando uma coroa de seringas para denunciar os efeitos nefastos da “colonização por meio da epidemia” de Aids. Na ocasião, foi abordado pela polícia, que achou que as seringas pudessem estar contaminadas.

No mês em que se comemora o 54º aniversário da revolta de Stonewall, chega às livrarias brasileiras o primeiro livro de Lemebel traduzido para o português. Editado pela Zahar, “Poco Hombre” é uma antologia de crônicas que resgata, a partir de uma perspectiva terceiro-mundista, uma certa tradição radical da comunidade LGBTQIA+.

Organizada pelo crítico literário espanhol Ignacio Echevarría e traduzida por Mariana Sanchez, a obra dá ao público brasileiro a oportunidade de conhecer um dos expoentes da literatura marginal latino-americana, descrito pelo conterrâneo Roberto Bolaño como “maior poeta de sua geração”.

VIDA E OBRA

Lemebel nasceu em 1952 na periferia de Santiago. Era bicha, pobre e descendente de indígenas mapuche. Dissidente em todas as acepções do termo, lutou contra o regime de Augusto Pinochet e se manteve igualmente crítico do consenso neoliberal vigente após a transição para a democracia no Chile.

Sua obra recupera a memória das vítimas da ditadura. Não é um relato do exílio endinheirado na Europa. É um testemunho das bichas, sapatonas e travestis da esquina, dos esfarrapados que ficaram para trás.

Também era dissidente dentro da comunidade LGBTQIA+. Rejeitava o anglicismo “gay” e outras nomenclaturas estrangeiras. Se descrevia como homossexual, bicha e viado, e usava pronomes masculinos e femininos.

“Lemebel foi queer antes mesmo de o conceito queer existir”, diz Óscar Contardo, seu biógrafo.

O artista começou a escrever tardiamente, depois dos 30 anos, mas em um primeiro momento não foi bem recebido pelos seus pares. Era visto como identitário demais, ou até sectário.

De fato, Lemebel não dava bola para a respeitabilidade. Sua língua era afiada como uma lâmina —e despudorada como um beijo grego.

Em seu texto mais célebre, “Manifesto (falo pela minha diferença)”, lido durante um protesto da esquerda chilena em 1986, em Santiago, Lemebel critica a ortodoxia da militância partidária: “Não me venha falar de proletariado, porque ser bicha e pobre é pior. Tem que ser ácido para aguentar. É desviar dos machinhos da esquina. É um pai que te odeia porque o filho quebra a munheca.”

Em seguida, emenda um aviso safado aos esquerdomachos de plantão: “Não se sinta agredido se falo contigo dessas coisas olhando seu volume no meio das pernas. Não sou hipócrita. Por acaso os peitos de uma mulher não chamam sua atenção?”. O “Manifesto” é o texto que abre “Poco Hombre”.

Em outra obra, uma intervenção feita com Francisco Casas Silva, com quem formava o coletivo artístico Yeguas del Apocalipsis, ou éguas do apocalipse, a dupla de bichas cavalga nua sobre um equino branco guiado por um par de lésbicas. A performance pode ser vista no documentário “Lemebel”, de 2020, disponível no Amazon Prime Video.

Lemebel não poupava críticas a ninguém, mas seria um erro chamá-lo de sectário. “Ele tinha um olhar generoso para todos os grupos marginalizados”, diz Amara Moira, escritora e doutora em crítica literária pela Unicamp.

O artista denunciava a transfobia e a misoginia persistentes na comunidade gay. Nos anos 1980, alguns militantes do movimento homossexual viam na travestilidade um retrocesso, uma performance caricata da heterossexualidade.

Para a equatoriana Carmen Alvaro Jarrin, pesquisadora do movimento trans brasileiro e doutora pela Duke University, nos Estados Unidos, “Lemebel via as travestis como o futuro, não o passado”.

Seu único romance, “Tengo miedo, torero”, conta a história ficcional do relacionamento de uma travesti com um guerrilheiro que participou da tentativa de assassinato contra Pinochet, em 1986, evento real do qual o ditador saiu ileso. A obra deve ser publicada no Brasil em 2024 pela Companhia das Letras.

Em “Poco Hombre”, Lemebel aponta caminhos para a construção da solidariedade entre a comunidade LGBTQIA+ e os povos indígenas. De forma perspicaz, o autor estabelece um paralelo entre a violência colonial e a LGBTfobia.

De um lado, os povos indígenas foram dizimados pela tuberculose e outras epidemias, e a cultura originária foi sobreposta pelo idioma espanhol escrito. Do outro, as LGBTs morreram aos montes por causa da Aids, outra doença importada, e sofreram com o apagamento de tradições orais como o pajubá, dialeto LGBT+ brasileiro, incompatível com a linguagem oficial, acadêmica e jornalística.

Juão Nyn, artista indígena potiguara, descobriu Lemebel em 2015, depois de fazer uma performance no palco do Centro Cultural São Paulo com um cocar de seringas. Alguns dos presentes notaram semelhança com a coroa de seringas do artista chileno, de quem virou fã.

Nyn é autor de de “Tybyra: uma tragédia indígena brasileira”, obra de ficção baseada na história documentada do primeiro nativo condenado à morte por sodomia no Brasil colônia, em 1614, no Maranhão.

Segundo Nyn, muitas das identidades vistas hoje como dissidentes de gênero já estavam aqui antes da colonização europeia. “Seria uma concessão se pautar pelas caixinhas impostas pelo movimento LGBTQIA+. As letrinhas também vieram de caravelas.”

PASSAGENS PELO BRASIL

Lemebel esteve no Brasil em pelo menos duas ocasiões. Na primeira, em 1980, veio de férias ao Rio de Janeiro, viagem que muito o inspirou a escrever, segundo o biógrafo Contardo –há um conto ainda não publicado em que o artista descreve sua passagem pela cidade maravilhosa.

Adorava música brasileira. Em uma crônica disponível no livro “Loco Afán”, ele descreve a apresentação de Ney Matogrosso na abertura do Rock in Rio em 1985 como um marco da cultura LGBTQIA+ na América Latina, e exalta uma certa viadagem generalizada da MPB nas figuras de Gal Costa, Gilberto Gil, Simone, Caetano Veloso e Maria Bethânia.

Lemebel sobreviria à Aids, mas não ao câncer. Morreu em 2015 por causa de um tumor na laringe.

Já adoecido, visitou São Paulo como convidado da Balada Literária em 2013. Quem o recebeu na capital paulista foi o escritor pernambucano Marcelino Freire, organizador do evento.

Ele conta que, mesmo debilitado, Lemebel pediu para ir ver os michês da cidade. Foram passear de carro por zonas como Arouche, Frei Caneca e Trianon. “Se eu não estivesse doente, vocês iam ver só”, dizia.

O chileno também pediu para ir a um restaurante vegano, onde se encantou com uns pequenos copos de chá feitos de estanho, e os surrupiou sorrateiramente.

Mais tarde, foi até o CCSP fazer uma apresentação. Acostumado a ser recebido por multidões durante suas passagens em outros países da América Latina, reclamou do pouco público presente ao evento.

Por causa da doença, falava com o auxílio de um eletrolaringe, aparelho que dava à sua voz um timbre metálico, e de tempos em tempos precisava cuspir a saliva acumulada na boca.

Sacou do bolso um daqueles copinhos de estanho, no qual depositava as suas cusparadas. Por ser feito de material opaco, o recipiente poupava o público daquele espetáculo ranhento.

A performance também pode ser interpretada como uma vingança simbólica de Lemebel contra o colonizador europeu. O estanho é um metal encontrado na Bolívia e utilizado na produção do bronze por meio da fusão com o cobre, uma das principais riquezas naturais do Chile. De certa forma, levar aquele copinho consigo não era roubo, e sim reparação histórica.

Freire lamenta que o Brasil tenha demorado tanto tempo para descobrir Lemebel. Segundo ele, esse atraso tem a ver com a exclusão que autores LGBTQIA+ sofrem no mercado literário.

Contardo acredita que Lemebel ficaria muito feliz ao ver a sua obra sendo publicada no país. “Quem sabe agora, se visitasse o Brasil, teria fãs que lhe dessem a recepção calorosa que merecia.”

POCO HOMBRE: ESCRITOS DE UMA BICHA TERCEIRO-MUNDISTA

Preço R$ 84,90 (400 págs.)

Autoria Pedro Lemebel

Editora Zahar

Organização Ignacio Echevarría

Tradução Mariana Sanchez

DANI AVELAR / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTICIAS RELACIONADAS