‘Culpa e Desejo’ revê trama de pedofilia com abordagem sexy, destrutiva e francesa

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A trama é a mesma. Uma advogada de meia-idade, especializada em abusos contra menores, começa a transar com seu enteado de 17 anos, que acaba de se mudar para a casa onde ela mora com o marido. Os diálogos sugestivos de “Culpa e Desejo”, de Catherine Breillat, seguem praticamente à risca o roteiro de “Rainha de Copas”, de May el-Toukhy, de 2019. Mas os filmes são opostos.

“Não sou nórdica, sou francesa”, diz Breillat, resumindo duas sensibilidades bem distintas. “Sou da terra de Érich Rohmer e Marivaux”. Ou ainda de Jean Cocteau, autor de uma frase-guia para o filme: “Sou uma mentira que sempre diz a verdade”.

Se a Anne de Trine Dyrholm é uma predadora escandinava que se aproveita de um jovem tão marrento quanto frágil, a de Léa Drucker é uma matrona normanda tão culpada quanto inocente por se envolver com o “twink” de cabelos dourados vivido por Samuel Kircher, que se apresenta a ela —e ao espectador— recém-saído do banho, de toalha na cintura.

Ainda que o título traduzido tenha preferido a lógica do crime e castigo, Breillat dispensa o moralismo desde o batismo da obra —no original, é “L’Été Dernier”, ou o verão passado, um título mais luminoso.

No filme em cartaz nos cinemas, tanto a mulher quanto o menino jogam com a sedução e a consciência um do outro, enquanto se devoram ao largo das convenções sociais. Da mesma forma que ela não se inibe de fazer perguntas íntimas ao jovem, ele não se incomoda de acompanhá-la num bar e largar o pai sozinho em casa.

“A Anne do meu filme se lança ao prazer, à tentação. ‘Rainha de Copas’ é moralista, mas eu sou subversiva”, diz Breilatt, que apresentou sua última obra no Festival de Cannes. “Muitos dizem que meu assunto é o desejo feminino, mas ele é tão presente quanto o desejo masculino.”

Após várias escapadas, é pela sede do jovem que, por um descuido, a relação degringola numa espiral destrutiva. A conclusão da tragédia, porém, se dá mais numa escala íntima que num âmbito jurídico.

Das poucas mudanças no “script”, o final é o mais significativo. É quando, como no restante da obra de Breillat, ela separa uma surpresa e justifica a existência desse remake, mais próximo de uma reapropriação.

“Não sou uma cineasta capaz de fazer uma obra sob encomenda, o filme tem de sair de dentro de mim”, afirma ela, que fez o trabalho a convite Saïd Ben Saïd, produtor de longas como “Bacurau” e “Benedetta”.

Este é o retorno da cineasta às telonas dez anos após “Uma Relação Delicada”, uma tortuosa autoficção em que Isabelle Huppert encarna os anos em que Breillat teve um AVC, sua recuperação e como caiu nas graças de um golpista. “Achava que este seria meu último filme”, diz.

Lá, como aqui, crime e culpa são faces da mesma moeda, o que põe em dúvida se há mesmo um abuso em “Culpa e Desejo”. “Poderíamos dizer que Anne é culpada. Mas culpada do quê? Quem não faria o mesmo no lugar dela?, afirma. “Numa cena, o jovem diz que quer que seu pai descubra a verdade. No filme dinamarquês, ele realmente quer. No meu, ele só quer seguir amando.”

A audácia não é inédita na carreira da diretora de 75 anos, respeitada por ser uma provocadora consciente de seus pontos de vista, remanescente de uma escola de grandes diretores franceses, como Maurice Pialat. Se “Culpa e Desejo” pode impressionar as plateias mais sensíveis, esta é até um ponto leve na carreira desta filósofa da alcova.

Basta ver “Romance”, no qual uma jovem sai atrás de vários parceiros sexuais, a maioria violenta na cama; ou “Anatomia do Inferno”, uma narrativa de teor mítico em que o ator pornô Rocco Siffredi vive um homem contratado para observar uma mulher por várias noites.

Já sexualidade jovial é tema de “Uma Adolescente de Verdade” ou “Para Minha Irmã”, uma de suas obras mais celebradas, que acompanha duas irmãs —uma magra e sedutora, outra gorda e comilona, mas que entende o mundo de forma mais clara, ainda que seja rejeitada pelos homens.

Em entrevistas, Breillat sempre destaca como as cenas de sexo são muito difíceis no set e as compara com coreografias de ação. “Nesse filme, tivemos momentos que chegaram perto do estado de graça”, diz ela, que também tem no currículo “Sex is Comedy”, que brinca com as dificuldades de rodar uma cena íntima.

“É preciso estabelecer a confiança entre os atores. Mas não precisamos de coach de intimidade para falar aonde vai a mão ou quando pode tocar o seio”, diz. “A cena precisa criar a ilusão do amor, e o corpo dos atores é a ferramenta desse trabalho. Daí surgem as emoções. Eu não filmo corpos nus. Filmo almas e a nudez dos rostos.”

CULPA E DESEJO

Onde Nos cinemas

Classificação 16 anos

Elenco Léa Drucker, Samuel Kircher e Olivier Rabourdin

Direção Catherine Breillat

HENRIQUE ARTUNI / Folhapress

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