Cursinho para indígenas vai a aldeias sem internet e a não fluentes em português

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O número de 9.339 indígenas inscritos no CNU (Concurso Nacional Unificado) trouxe uma questão: como eles iriam estudar para uma prova em português, sobre temas do funcionalismo público, considerando que alguns povos vivem em aldeias onde nem sequer há internet?

Como os moradores de comunidades distantes fariam para realizar a inscrição e, principalmente, chegar às cidades onde a prova será aplicada?

Por isso, indígenas e indigenistas se mobilizaram para criar um cursinho e uma vaquinha para a prova, que acontece no próximo domingo (5).

O movimento foi liderado por integrantes da INA (Indigenistas Associados), que primeiro abriu um chamado para voluntários que quisessem dar aulas sobre os temas que vão cair na prova.

Depois, firmou parcerias com o Cursinho Colmeia, da Unicamp, com o ICL (Instituto Conhecimento Liberta) e com o PodConcurseiro, que ajudaram com divulgação, material didático, aulas e professores.

“A maior dificuldade é a escrita do português”, diz Elenira Apurinã, professora e uma das idealizadoras da iniciativa.

Ela lembra que a prova de nível médio, por exemplo, terá uma questão dissertativa, e que por isso o material didático para essa modalidade focou sobretudo em português. E reclama que a educação pública oferecida pelo Estado brasileiro aos povos é precária.

“Muitos falam a língua materna e não dominam o português nem para falar, imagina para escrever”, diz.

Apstiré Xavante, que vai prestar o concurso e assiste às aulas, lembra ainda o obstáculo tecnológico.

“São várias dificuldades, como a compreensão, a interpretação desses mecanismos digitais, que a gente precisa lidar hoje em dia. Se é difícil para mim, que vivo em contexto urbano, faço uma universidade [é estudante da UnB], imagina para outras pessoas que não tiveram essa oportunidade?”

Foram feitas aulas semanais ao vivo e gravadas. Também foi disponibilizado material didático em PDF.

Mais de 1.500 mil indígenas de todas as regiões do país participaram do cursinho, segundo os organizadores.

A alta participação é consequência do fato de que, pela primeira vez, um concurso nacional teve cota para indígenas –de 30% e limitada às vagas na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).

A inscrição de quase 10 mil indígenas –6.600 para postos de nível médio, que exige menor formação educacional– faz com que a batalha por uma das 502 vagas da fundação seja disputada.

Tanto Apurinã como Xavante comemoram as cotas para indígenas, porém pedem que os mecanismos de acesso dos povos ao funcionalismo público sejam ampliados. Por exemplo, defendem um percentual maior e que não seja restrito à Funai.

Ambos reiteram que a importância disso é conseguir colocar representantes indígenas nas instâncias de decisão da política pública, sobretudo aquelas voltadas aos povos originários.

Elenira cita, por exemplo, a alta evasão de servidores da Funai em postos mais isolados, em razão das condições de vida muito diferentes às das cidades. Ela argumenta que, se tais cargos fossem ocupados por indígenas, tal contraste não aconteceria.

“A intenção [de se inscrever] é ocupar os espaços de decisão política para que nós sejamos atendidos da melhor forma possível, de uma forma menos assimétrica do que como acontece hoje”, diz Xavante.

A distância, inclusive, é um problema para os indígenas chegarem aos locais de prova e também foi uma questão que teve que ser enfrentada pelo cursinho.

A organização identificou inscritos que vivem em aldeias sem acesso a energia elétrica ou internet, que não são nem sequer municípios onde a prova será aplicada.

“A gente gravou os conteúdos, teve alguns que fizemos impressões em papel. E enviamos para esses parentes [termo usado para se referir aos indígenas] que vivem em difícil acesso, para que, pelo menos, alguma coisa eles recebessem para estudar sobre o que vai cair na prova”, diz Elenira.

Eles também organizaram uma vaquinha para arrecadar recursos para facilitar o transporte e a hospedagem dos indígenas para a prova.

Apstiré Xavante nasceu em uma aldeia na Terra Indígena São Marcos, em Mato Grosso. Ele relata episódios de racismo inclusive nas cidades mais próximas das terras indígenas.

Hoje morando em contexto urbano para estudar, ele entende que a missão de quem acessa esses espaços, inclusive de quem passar no concurso, é de não abandonar seu território ancestral, mas sim retornar para ele o conhecimento adquirido e ajudar a melhorar as condições de vida de sua comunidade.

“A gente que porventura tem essa oportunidade de sair e estudar fora das aldeias, creio que ocupa o papel do governo quando volta”, diz.

JOÃO GABRIEL E JORGE ABREU / Folhapress

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