SÃO VICENTE, SP E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A auxiliar de serviços gerais Regina Pereira de Oliveira, 52, está decidida a se mudar do bairro onde morou por três décadas com a família em São Vicente, no litoral paulista. O motivo é a ausência de seu filho João Lucas Pereira de Oliveira Muniz, morto aos 21 anos por policiais militares.
Ferido com ao menos três tiros no dia 28 de março deste ano, ele foi um dos últimos mortos na série de operações policiais realizadas na Baixada Santista. A primeira delas, a Escudo, completou um ano neste domingo (28).
João Lucas está entre as 110 pessoas mortas por policiais na região durante o período em que as ações estavam em andamento.
Entre famílias que perderam entes queridos de forma violenta, abandonar a própria casa não é incomum. Há casos em que isso se torna imposição das circunstâncias: há famílias que relatam ameaças e intimidação por parte de policiais após as mortes, e resolvem se mudar por questões de segurança.
Regina, no entanto, quer sair do bairro Jóquei Clube porque a todo canto vê algo que lembra seu filho morto: a um quarteirão de distância de sua casa está a bicicletaria onde ele trabalhava desde os 12 anos. Um pouco mais a frente está a escola onde fez o ensino médio. As ruas estão repletas de amigos do jovem.
“Acho que mataram o meu filho por ele estar na periferia, ser negro e pobre”, ela diz. “Nós moramos na periferia. Na periferia tem muita gente boa, tem muita gente estudiosa, tem muita gente trabalhadora. Tem um lado ruim da sociedade, como todo lugar tem.”
A mãe de João Lucas passou dias em depressão sem sair de casa, mas depois resolveu ir até a favela do Dique do Piçarro, onde ele foi morto, para investigar a morte por conta própria. Ouviu relatos de moradores que PMs teriam anunciado um toque de recolher horas antes de o jovem passar ali, às 2h30. Ele estava visitando o pai doente, e teria saído de casa para buscar um remédio, segundo a mãe.
Depois de ouvira história contada por vizinhos e fazer filmagens no local, na tentativa de fazer uma reconstituição, a disputa judicial para provar que ele foi assassinado sem justificativa é o que move Regina. “Eu respiro justiça, eu acordo [por] justiça, eu almoço justiça.”
A história de Regina é semelhante às de centenas de mães que perderam os filhos para a violência policial na Baixada Santista nos últimos anos. Neste mês, algumas dessas mães apresentaram uma pesquisa sobre as consequências da violência policial na saúde materna, numa colaboração com pesquisadores da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e da universidade Harvard.
O estudo “Vozes de Dor, da Luta e da Resistência das Mulheres/Mães de Vítimas da Violência do Estado no Brasil” colheu relatos de mulheres em São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Bahia, identificou padrões no comportamento das forças de segurança em relação às famílias de vítimas e das instituições do sistema Judiciário ao lidar com seus casos.
O trabalho de campo foi feito por integrantes do movimento social Mães de Maio, formado a partir de mulheres que perderam seus filhos no contexto dos confrontos entre forças policiais e o o grupo criminoso PCC em 2006, nos quais centenas morreram.
Um dos principais interesses do grupo era entender o impacto que as mortes de filhos em ações da polícia deixaram nas mulheres, especialmente nas mães.
A violência policial, diz o estudo, criou “uma sensação de perigo permanente e torturador, intensificando o sofrimento causado pela perda, impactando diretamente no convívio social e familiar, nas atividades rotineiras”.
“São inúmeras as sequelas deixadas pelo sofrimento e pelo sentimento de incapacidade que se constituem em doenças que acometem o corpo dessas mulheres e familiares”, continua o texto. “Dentre as citadas nas narrativas estão: hipertireoidismo, transtorno bipolar, ansiedade, depressão, insônia, diabetes, AVC, pressão alta, síndrome do pânico, úlcera nervosa, queda de cabelos, problema cardíaco, tireoide, osteoporose, câncer, mioma, cisto no útero, enfisema pulmonar, arritmia cardíaca e derrame.”
As entrevistas com as mães trazem relatos de várias violações de direitos, como invasões de domicílio e ameaças por parte de policiais. O estudo faz também recomendações de políticas públicas para garantir o acolhimento dessas famílias e o direito à reparação judicial.
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DEFENSORIA PÚBLICA FAZ 1º PEDIDO DE INDENIZAÇÃO DA ESCUDO
Nesta semana, a Defensoria Pública estadual prepara o primeiro pedido de indenização à família de um dos mortos pela PM na Operação Escudo. Trata-se de Rogério Andrade de Jesus, 49, morto no dia 30 de julho do ano passado em Guarujá.
CRONOLOGIA DAS OPERAÇÕES ESCUDO E VERÃO
27.jul.2023: Morte do soldado Patrick
O soldado Patrick Bastos Reis, 30, é morto com um tiro enquanto fazia patrulhamento no Guarujá, no litoral paulista. O governo anuncia uma megaoperação com agentes de 15 batalhões para o dia seguinte, em resposta ao ataque, e tem início a primeira Operação Escudo.
30.jul.2023: Denúncias de abuso policial
Como mostrou a Folha, começam as primeiras denúncias de morte de inocentes desarmados pela PM. Moradores da região também relatam ameaças a moradores e que casas foram invadidas por agentes encapuzados. Em quatro dias, 12 pessoas são mortas pela polícia.
5.set.2023: Fim da 1ª fase da Escudo
O governador Tarcísio de Freitas anuncia o fim da Escudo. A operação aquela altura havia deixado 28 mortos e era a operação oficial da PM que mais matou desde o Carandiru.
8.set.2023: Sargento aposentado é morto; tem início a 2ª fase da Escudo
O sargento aposentado Gerson Antunes Lima é morto na frente de casa em São Vicente, e outros PMs são atacados nos dias seguintes. Uma nova operação Escudo é acionada, e oito pessoas são mortas pela PM em 13 dias. A operação dura até o fim de setembro.
26.jan.2024: Morte do soldado Marcelo
O soldado Marcelo Augusto da Silva é morto a tiros na rodovia Imigrantes. Lotado em um batalhão na zona leste da capital, e estava reforçando o efetivo policial do litoral; uma nova Operação Escudo é anunciada na região.
2.fev.2024: Morte do soldado Cosmo
Uma semana após a morte de um soldado, a PM tem nova baixa no litoral. O soldado Samuel Wesley Cosmo, da Rota, é morto durante uma ação numa favela de palafitas. O governo paulista promete ir atrás do criminoso.
3.fev.2024: O dia que a PM mais matou na Baixada Santista
No dia seguinte à morte do soldado Cosmo, sete pessoas são mortas pela PM na Baixada Santista. É o dia com maior letalidade policial em 11 anos, desde o início da série histórica. Até ali, a operação em andamento ainda era chamada de Escudo pela gestão Tarcísio.
7.fev.2024: Morte do cabo Silveira
Um policial militar morre e outro ficou ferido em Santos, levando à terceira morte de policial na região em menos de duas semanas; Tarcísio transfere a cúpula da Segurança Pública para a Baixada Santista.
8.mar.2024: ‘Não tô nem aí’
O governador Tacísio de Freitas diz que não está “nem aí” para denúncias de abusos cometidos por policiais militares nas operações, feitas por entidades à ONU. A operação, que passou a ser chamada de “Verão” pelo governo algumas semanas antes, vivia um período de dez dias sem vítimas. As mortes recomeçaram no dia seguinte à declaração.
27.mar.2024: Morte de Edneia, mãe de 6 filhos
Edneia Fernandes Silva, 31, é morta com um tiro na cabeça durante uma ação policial em Santos. Mãe de seis filhos, ela é a segunda mulher a ser morta em operações na região. O governo levaria três meses para reconhecer que o tiro que a matou partiu da polícia.
1º.abr.2024: Fim da Operação Verão
O fim da operação é anunciado pelo governo com um saldo oficial de 56 mortes. Na prática, o anúncio significa o fim do deslocamento de batalhões de fora da Baixada Santista para reforçar o policiamento local. Um efetivo de 341 policiais a mais passa a ficar permanente na Baixada
O caso foi também o primeiro a gerar uma denúncia do Ministério Público de São Paulo contra policiais por uma morte na operação, em dezembro do ano passado. Dois PMs são réus sob acusação de terem matado o homem quando ele estava desarmado e terem colocado na cena do crime uma pistola e um colete à prova de balas. O processo está em andamento e a defesa dos policiais afirma que não há provas contra os dois.
“É dever do Estado zelar pelos direitos humanos de todos os cidadãos de reparar os danos causados por ações dos agentes públicos, e nesse caso não importa se o homicídio é doloso ou culposo”, diz a coordenadora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria, Fernanda Balera.
As defensoras preferiram aguardar a denúncia dos promotores para entrar com o pedido de indenização, embora não exista obrigatoriedade para isso. Novos pedidos devem ser protocolados para reivindicar indenizações do governo estadual às famílias de cada caso denunciado.
Nos casos que forem arquivados, o núcleo deve protocolar uma ação coletiva de reparação de danos, por entender que um processo conjunto teria mais chance de ser reconhecido pela Justiça.
A pedido da família, a Defensoria Pública não revelou o valor da indenização que será solicitado à Justiça.
TULIO KRUSE E DANILO VERPA / Folhapress