HAVANA, CUBA (FOLHAPRESS) – Os turistas resumem a passagem por Cuba como entrar no túnel do tempo pela oportunidade de tirar fotos e passear nos carros dos anos de 1940 e 1950 que ainda circulam por lá. Hospedados em confortáveis hotéis com bandeira internacional, de frente para o azul translúcido do mar do Caribe, e com um copo de mojito gelado na mão, não é difícil ter esse olhar romântico. Para os cubanos, no entanto, a ilha hoje está mais para cenário de um filme distópico.
Fora das áreas turísticas, a maioria dos veículos pré-revolução ou seja, dos anos 1950 para trás é sucata em movimento, e muitos funcionam como abafados táxis coletivos. A infraestrutura urbana da maior parte da capital, Havana, se deteriora por falta de manutenção. Há prédios inteiros esfarelando, tanto que ao longe parecem ter sido bombardeados. A rotina do cubano é de permanente escassez.
Em março, o Programa Mundial de Alimentos da ONU afirmou ter recebido um pedido sem precedentes de Havana: ajuda no fornecimento de leite para crianças com menos de sete anos. Em julho, o Canadá, de onde saem quase 1 milhão de viajantes rumo à ilha caribenha anualmente, emitiu nota oficial alertando para “o alto grau de cuidado em Cuba devido à falta de itens básicos como comida, remédios e combustível”.
Em entrevista à reportagem, o conselheiro e vice-chefe da Embaixada de Cuba no Brasil, Melne Hernández, e o cônsul do país em São Paulo, Benigno Fernández, afirmaram que o país é muito prejudicado por ter sido recolocado na lista dos Estados Unidos de patrocinadores do terrorismo. Ambos negam haver fome no país.
Os moradores, porém, relatam que já não é fácil fazer três refeições completas por dia, e os idosos, em sua maioria famélicos, retratam essa dificuldade. Há restrição na oferta de muitos itens alimentícios. A depender da semana, falta um simples macarrão.
A inflação dificulta a compra dos produtos à disposição. Nas chamadas “tiendas”, mercados com certo nível de abastecimento de itens de primeira necessidade, onde as compras são feitas em moeda estrangeira, um pacote de café de 500 gramas pode custar quase US$ 8,90 (R$ 50).
Muitos passam o dia tentando vencer a burocracia em busca de alimentos. A maioria sobrevive do que o regime chama de “livreta de racionamento”, um pequeno caderno azul que também está em falta na ilha. Segundo as próprias autoridades, cerca de 30% da população que deveria acessar as “bodegas”, onde alimentos são vendidos a preços simbólicos, ainda não possuem o benefício devido à escassez de insumos para produzir novas livretas.
A cesta básica também encolheu. Nos áureos tempos havia carne bovina, frango, óleo, manteiga, leite condensado, papel higiênico, arroz, grãos e até doces, biscoitos, chocolates, cigarros, refrigerantes. Em julho, pelos relatos em Havana, vinham cerca de 250 gramas de chícharo (semelhante ao grão de bico), 250 ml de óleo, um pacotinho de café e aproximadamente 2,5 kg de arroz.
Em Havana Velha, uma bela área arquitetônica preservada para receber os estrangeiros no centro da capital, os cubanos buscam socorro com os visitantes. Pedem não apenas dinheiro e um prato de comida, como se vê em muitas das cidades brasileiras. Querem roupas, sapatos e até remédios, citando nominalmente produtos como Tylenol.
Farmácias oficiais estão com prateleiras vazias, e faltam medicamentos e insumos médicos até mesmo no sistema de saúde, que já foi exemplo de serviço que deu certo no regime. Os relatos são de que hospitais estão sucateados. A depender da complexidade do atendimento, o paciente e familiares têm de levar os insumos ou até pagam pelo procedimento.
É nítido o racionamento de combustíveis. Nos postos, num dia, há filas, no outro, estão às moscas. Apesar dos recentes investimentos em fontes renováveis, como solar, a ilha depende de energia térmica. À noite, postes são desligados, e quadras inteiras ficam às escuras. Os apagões são constantes. Em março, um desses blecautes gerou protestos em várias cidades, com centenas indo às ruas. Foram as maiores manifestações desde julho de 2021, quando houve uma onda de atos populares e cerca de 300 pessoas foram condenadas à prisão.
Cuba vem tendo problemas até em atividades tradicionais. Em abril, o regime divulgou que havia produzido apenas 300 mil toneladas de açúcar das 412 mil esperadas. No final dos anos 1980, o país era o maior produtor mundial, com quase 8 milhões de toneladas por ano.
A agropecuária sofre da falta do básico, como sementes, fertilizantes, maquinário e infraestrutura. Numa viagem pelo interior, é possível ver que a produção de arroz, por exemplo, é seca e ensacada no asfalto da estrada, com os veículos passando por cima. Alguns agricultores trabalham de chinelos ou até descalços.
A deterioração aparece até nos indicadores econômicos oficiais, consolidados pela Onei (Escritório Nacional de Estatística e Informação). A variação do PIB (Produto Interno Bruto) após a pandemia é praticamente a metade do registrado nos dez anos anteriores à Covid-19. A distribuição de riqueza medida pelo PIB per capita mostra que o cubano empobrece. A balança comercial, essencial para a economia e o abastecimento, patina. O investimento despencou.
Desde os anos 1960, quando os Estados Unidos impuseram o bloqueio a Cuba, a ilha sofre com altos e baixos da geopolítica, diz o professor de Relações Internacionais da UnB (Universidade de Brasília) Roberto Goulart. O momento atual equivale a uma tempestade perfeita contra a ilha. Antes mesmo de Cuba se recuperar do baque da pandemia, quando ficou fechada, voltou para a lista de países financiadores do terrorismo, e parceiros importantes tiveram problemas em fazer comércio.
A Guerra da Ucrânia prejudicou ainda mais a logística de abastecimento de Cuba. A crise na Venezuela iniciada para os cubanos, segundo Goulart, com a morte de Hugo Chávez (1954-2013) também compromete o apoio deste antigo aliado no fornecimento de petróleo.
Muitos cubanos reagem deixando o país. Desde 2015, após atingir o pico de 11,2 milhões, a população declina. Em 2021, houve forte êxodo. Um turista atento pode perceber que a insatisfação paira no ar. Produções culturais, de autores anônimos, expostas em cafés e restaurantes, questionam a situação. Uma delas, imitando a logomarca da Coca-Cola, resume o estado de ânimo: Revolución zero calories. No sugar. Great revolution. Taste.
ALEXA SALOMÃO E GABRIELA ANTUNES / Folhapress