Debate com Malafaia sobre poliamor reforça comissão no Congresso como bastião conservador

SÃO PAULO, SP E BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Um projeto de lei que proíbe o registro em cartório de famílias poliafetivas reforçou o papel da Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família como bastião da pauta de costumes na Câmara dos Deputados.

Uma audiência pública promovida pelo colegiado nesta quarta (8) serviu de palco para o pastor Silas Malafaia evocar velhos fantasmas associados à esquerda em círculos conservadores, como marxismo cultural, socialismo e um suposto modelo humanista-ateísta, “o esteio de toda essa história aí”. Todos estariam interessados em destruir a família.

A mesa aconteceu um mês após a mesma comissão aprovar outra proposta legislativa coqueluche dos escudeiros da pauta moral, que bane o casamento homoafetivo no Brasil. É um primeiro passo para levar o tema ao plenário.

Malafaia foi um dos convidados a discutir o projeto de lei que quer vetar o reconhecimento cartorial a núcleos familiares formados por três ou mais pessoas.

Antes de afirmar que “a mais importante tradição do mundo ocidental é o cristianismo”, o líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo disse que “não trouxe a Bíblia, mas a Constituição, para começar nossa conversa”.

Ele citou o artigo 226 da Carta Magna, que define o planejamento familiar como “livre decisão do casal”. “Casal é par, não tem abertura a nenhum outro tipo de consideração a não ser a família monogâmica”, disse Malafaia.

O pastor afirmou ainda que a gênese dos direitos humanos “vem do cristianismo, não do socialismo nem de esquerda”. E apontou dedos para o marxismo cultural, tese conspiratória popular entre conservadores.

Ela acusa a esquerda de se infiltrar nas artes, na imprensa e em outras instituições para corroer a civilização ocidental por dentro. Segundo Malafaia, essa corrente sacou que não é pela bala, mas pela dominação cultural que se muda a sociedade com mais eficiência.

Malafaia viu na audiência uma brecha para atacar o STF (Supremo Tribunal Federal), alvo preferencial de bolsonaristas e, nos últimos dias, também de nomes graúdos como o de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado. A corte, afirmou, “rasga sucessivamente a Constituição e, num efeito cascata, através da caneta, quer impor à sociedade o que não tem respaldo constitucional”.

Fez em seguida um aceno àqueles que reclamam de um Judiciário intrusivo, disposto a tomar para si tarefas que caberiam a parlamentares. “Vivemos um tempo em que cada um vem bagunçar o coreto do Legislativo, que é quem tem autoridade para fazer leis.”

Malafaia foi aplaudido ao criticar outro debatedor na mesa, que alertou sobre as dificuldades de magistrados para avaliar casos como o de uma septuagenária que poderia ser deixada sem quaisquer direitos após o homem casado com quem manteve uma relação por décadas romper com ela. “Meu querido juiz, todos nós enfrentamos dificuldades nas nossas funções. Moleza é pudim, sopa de nhoque e gelatina. Desculpa a expressão: quem não quer brincar, não desce pro play.”

Juiz de direito e membro da Academia Brasileira de Direito Civil, Pablo Stolze Gagliano antecedeu a fala do pastor. Ele questionou a iniciativa legislativa para barrar as uniões em xeque e, para ilustrar seu ponto, mencionou um caso que foi parar na Justiça. Envolvia “duas senhoras que conviveram com um senhor por 28 anos na mesma casa”.

“Eu, na condição de juiz, não conseguiria viver assim, mas aquelas pessoas viveram assim, e não posso colocar a minha perspectiva de mundo na perspectiva de outras pessoas.” Um magistrado, continuou, não pode “julgar com seu achismo”.

Para Gagliano, “esse tipo de proibição [prevista no projeto de lei] não vai impedir que na vida real essa situação aconteça”. Caberia ao Estado despir de todos os direitos, como o previdenciário (que regula pensões) e o sucessório (heranças), quem escolhe por livre e espontânea vontade adotar um modelo de vida alheio à monogamia?

Outra palestrante, Renata Cysne, diretora nacional do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), defendeu que não há por que fingir que não existem famílias alternativas ao modelo tradicional de mãe, pai e filhos. Outros formatos, como os núcleos formados por avós e netos, exemplificou, estão por aí.

Mas um “falso moralismo” continua fechando os olhos para uma realidade plural, disse. “Estamos discutindo mais uma vez a marginalização, a invisibilidade de pessoas, de crianças que vivem nesses contextos familiares, porque elas existem e precisam ter a proteção do Estado.”

Cysne argumentou que não estão na berlinda as relações “escondidas entre quatro paredes”, como as de cônjuges enganados por pares que têm amantes. Tratam-se de relacionamentos consentidos por todas as partes e, segundo ela, devem ter respaldo legal.

Outro convidado, o advogado Marcos Alves da Silva, também do IBDFAM, reforçou a necessidade de zelar pelos direitos dessas famílias múltiplas.

Apesar das vozes divergentes no debate, a plateia de deputados já parecia ter um veredito formado: abaixo a poligamia. Os parlamentares inscritos para falar no microfone eram todos da base aliada do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), sem nenhum contraponto progressista.

Marco Feliciano chegou a chamar Malafaia de 514° deputado, exaltando-o como peça extra na Casa com 513 congressistas. Ex-presidente da bancada evangélica, Eli Borges ironizou que, se aceitarmos todas as demandas de minorias, em breve seria preciso “fazer lei para proteger abortistas e feministas”.

Silvia Waiãpi, indígena, disse que sua cultura acatava o poliamor, mas ela, não. Éder Mauro aproveitou os holofotes para acusar a esquerda de apoiar o Hamas, grupo terrorista palestino que atacou Israel em outubro.

Todos eles são do mesmo PL de Bolsonaro.

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER E MARCELO ROCHA / Folhapress

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