SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – De repente, pessoas brancas começam a ser degoladas brutalmente com arame farpado. O principal suspeito é um homem negro que sempre está na cena do crime, segurando os genitais do cadáver na palma da mão. Só tem um probleminha que confunde a polícia: ele também está morto.
“As Árvores”, thriller sanguinolento que abusa de cenas assim, é a estreia do celebrado escritor afro-americano Percival Everett nas livrarias brasileiras se o nome soa familiar, talvez seja porque o autor veterano teve um pico de fama recente quando seu livro mais conhecido, “Erasure”, virou o filme “Ficção Americana”, indicado a cinco Oscar.
Assim como naquele romance de 2001, aqui há uma sátira das mais sardônicas sobre as relações raciais. Mas agora, escrevendo duas décadas depois, o autor pesa mais a mão na violência e no absurdo.
Quando fica evidente que os assassinatos em série têm algo de retaliação contra a longa história de linchamentos que vitimaram negros no sul dos Estados Unidos, uma personagem idosa pede a palavra. “Se esses espíritos estão mesmo atrás de vingança, vai ter muito mais mortes por aqui. Eles vão se esbaldar por aqui.”
Por que o autor decidiu adicionar temperos sobrenaturais a um prato cheio de realismo? “Pense em como é absurdo um mundo em que todo um grupo de pessoas precisa andar preocupado em ser parado na estrada e morrer. Isso é maluco”, diz o escritor de 67 anos, afável e professoral, durante entrevista por vídeo à Folha de S.Paulo.
“Não importa o que eu escrevesse, uma nave espacial poderia entrar na história, não seria mais estranho que o fato de que nós contratamos pessoas para nos proteger [policiais] e elas nos matam. Não dá para ficar mais absurdo que a realidade para os jovens negros.”
O absurdo é irmão do humor, uma ferramenta que Everett domina com destreza não com piadas, mas com ironia, como ele mesmo define, para relaxar os leitores antes das coisas mais duras.
Ao ser perguntado se hoje há uma escassez maior de material satírico sobre raça, o autor diz que estamos mais “informados e sensíveis” sobre esse assunto, mas também “menos durões e menos sofisticados, de certa forma”.
Everett vê alguma “tendência fascista” em todo o espectro político americano que “tornou a polarização o principal discurso”. “Eu não fico muito online para entender o que chamam de cultura do cancelamento, mas escuto que todos estão prontos para pular no pescoço do outro por algo que disseram, em vez de entrar de fato num debate.”
“Não sei se você conhece o filme Banzé no Oeste”, continua o professor da Universidade do Sul da Califórnia, em referência a uma farsa dirigida por Mel Brooks em 1974. “Não conseguiríamos fazer isso hoje. E tem poucos trabalhos tão espertos sobre raça quanto esse, muito por causa de Richard Pryor. É um filme com problemas, mas tem um diálogo leve sobre as diferenças raciais que é refrescante.”
A sátira é cheia de piadas sobre raça, de um jeito que escancara o tamanho do nonsense, do disparate da coisa. “Se você não aceita o absurdo da vida, não vai muito longe. E é isso que temos hoje. Todo mundo quer estar certo. Ninguém está satisfeito em só ficar confuso.”
Everett se especializa nessa nuance de incerteza, evitando se engajar num discurso pronto. Dá para dizer que o argumento inteiro de “Ficção Americana” cujo livro-base será enfim traduzido e editado no Brasil em 2025 é sobre como a negritude não é um bloco monolítico.
Seu protagonista, Monk, é um intelectual frustrado com a maneira como uma escritora negra faz sucesso com um livro que, para ele, reforça todos os piores chavões sobre o que é ser negro. Então, ele decide dobrar a aposta e lançar um romance estereotipado como piada para sua surpresa, faz sucesso ainda maior.
Uma acusação recorrente contra o filme de Cord Jefferson, lançado no ano passado, é que soava datado: se a crítica de Everett era ácida e pertinente quando o romance foi publicado, agora o cenário era outro, mais avançado. Ao ouvir isso, o escritor diz que o mundo mudou, mas nem tanto.
“Aumentar a quantidade de escritores negros no mercado não muda realmente o problema”, afirma. “Olhe a aparência dos executivos nas editoras. Não reflete a população, nem mesmo a população de escritores. As decisões ainda são tomadas com base neles. E ainda persiste a crença de que há uma literatura afro-americana, o que é uma visão egoísta e com viés racial.”
O escritor usa o paralelo de uma amiga sua, cineasta negra que fez sucesso dirigindo uma comédia romântica. Depois que seu filme estourou, passaram a chover ofertas do mercado. “Mas eram biografias de vítimas de violência policial ou histórias de escravidão”, diz, deixando escapar uma risada. “Não foi isso que ela fez. Era o que achavam que ela deveria estar fazendo.”
Será que o próprio Everett já se sentiu tentado a evitar discutir raça nos seus livros para não ser carimbado num estereótipo?
“Por que evitar? O traço mais definidor da experiência americana é a raça. Não há um só trabalho artístico válido nessa cultura que não aborde a raça de alguma maneira. Mesmo a ausência da ideia de raça é uma expressão política do que a América branca quer ver. Isso não quer dizer que toda situação tem componente racial. Mas esses são os Estados Unidos.”
Everett conecta essa expectativa de um país branco a Donald Trump, um personagem que aparece pelas beiradas de “As Árvores” até que seu barulho fica gritante demais para ignorar.
“Não quero dar muito crédito a ele, que é meramente um sintoma de algo maior, mas um sintoma terrível e pernicioso. É estúpido o suficiente para ser perigoso, representa a arrogância do racismo na nossa cultura. Eu estava sentindo isso enquanto escrevia e não quis tirar do livro.”
Os personagens brancos do romance, homens e mulheres com poucas qualidades e muita indolência, podem ser lidos sem perigo como caricaturas de Everett para o trumpismo.
“Não acho que a maioria dos americanos seja assim. Acho, sim, que a maioria dos americanos é preguiçosa. E que fecha seus olhos, complacente, para a realidade diante de seus olhos.”
AS ÁRVORES
Preço R$ 84,90 (352 págs.); R$ 59,90 (ebook)
Autoria Percival Everett
Editora Todavia
Tradução André Czarnobai
WALTER PORTO / Folhapress