SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Enquanto os planos de saúde registram aumento na demanda por tratamentos de autismo, e as famílias dos pacientes enfrentam dificuldades no atendimento, médicos e acadêmicos avaliam que o debate sobre o tema precisa ser aprofundado e exige atenção das autoridades.
Pacientes, profissionais de saúde e empresas do setor aguardam manifestação da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) após a audiência pública realizada em outubro para discutir a assistência aos beneficiários com TEA (Transtorno do Espectro Autista) e outros TGDs (Transtornos Globais de Desenvolvimento). Na ocasião, Alexandre Fioranelli, diretor da ANS que abriu a sessão, disse que o tema ainda suscita demandas crescentes por diferentes setores da sociedade, o que indica necessidade de debate, e o aprimoramento da regulação deve seguir avançando.
Conforme os dados do CDC (centros de controle e prevenção de doenças dos Estados Unidos), a prevalência de crianças com oito anos de idade no espectro autista saltou de 1 em 150 no ano 2000 para 1 a cada 36 em 2020 no país. A Abramge (associação de empresas de planos de saúde) afirma que o custo das terapias de TEA e TGDs subiu quase 75% desde 2021 e pretende levar à ANS uma proposta de alteração do rol de cobertura.
Segundo Guilherme Polanczyk, professor de psiquiatria da infância e adolescência da USP (Universidade de São Paulo), o tratamento é custoso porque pode se prolongar por muitos anos e envolve atendimentos multidisciplinares com diferentes profissionais -como médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos. Mas ele avalia que o plano de saúde não deve intervir nas decisões médicas.
“Não é o plano que pode ou deve estabelecer qual é a linha de cuidado. Isso é uma discussão científica, em primeiro lugar. Tem toda uma questão de preferência das famílias, que é importante considerar, além da evidência científica”, diz.
Polanczyk ressalva que algum nível de diretriz, em linhas gerais, pode ser bem-vindo, desde que orientado por associações e sociedades médicas. “Temos um país enorme com falta de profissionais treinados, então, se você tem uma padronização e diretrizes clínicas, muitas vezes, ajuda a prática clínica de pessoas que estão distantes do centro. Mas sem dúvida, a motivação tem que ser o melhor cuidado do paciente e não simplesmente o custo”, diz ele.
A variedade de tratamentos adequados aos diferentes níveis de suporte em cada paciente eleva a complexidade do tema, mas a busca por evidências científicas deve pautar a discussão. De acordo com o professor, no autismo, o tratamento básico é a psicoterapia, que ajuda a família e a escola a lidarem com comportamentos da criança, assim como desenvolver habilidades.
“Muitas crianças vão precisar de fonoaudiólogos porque se trata de comunicação, fala e linguagem. Muitas têm prejuízos motores e podem precisar de terapia ocupacional. Para algumas crianças, o acompanhamento médico vai precisar ser muito próximo, porque vão precisar usar medicação, vão ter complicações como alterações do sono, epilepsia, problemas gastrointestinais, então vão precisar de muitos especialistas médicos”, diz.
Graccielle Asevedo, vice-coordenadora do centro especializado em TEA da Unifesp, que também é psiquiatra da infância e adolescência, alerta que o atraso no atendimento pode prejudicar as crianças de forma incalculável, ou seja, quando a família precisa enfrentar dificuldades burocráticas nos planos ou até lutar na Justiça para ter acesso ao tratamento, a espera pode afetar o desenvolvimento.
“Pela plasticidade cerebral e pelo que acontece no desenvolvimento infantil, que é muito rápido, a preconização é que sejam ao menos 15 a 20 horas semanais, a depender do nível de suporte, pelo menos até os 5 anos. A partir dos 6, o nível de evidência para intervenções mais intensivas, que chamamos de abrangentes, fica um pouco menor. Os estudos são mais concentrados nas faixas até 6 anos. Mas sabemos que para os níveis de suporte 3 vai precisar de terapia intensiva provavelmente para o resto da vida”, diz.
Já nos pacientes mais velhos, segundo Asevedo, é difícil dizer que as terapias comportamentais abrangentes intensivas são válidas para adultos porque há poucos dados na literatura.
Em relação ao número de horas, segundo a psiquiatra, há estudos que chegam a 40 horas semanais, mas as necessidades variam e nem todos precisam de carga intensiva. Há situações que costumam gerar mais discussão, segundo Asevedo, como a definição de quem cobre a despesa se um paciente com autismo tiver indicação para levar um acompanhante terapêutico na escola, uma vez que, além das questões pedagógicas, o aluno pode ter dificuldades sociais e de comportamento.
Para a psiquiatra, as regras da ANS poderiam esclarecer alguns pontos, como o atendimento na casa do paciente ou em parques.
“Há uma indicação de que a terapia seja feita em múltiplos locais. Mas os convênios alegam que isso é home care, e que eles não vão fornecer, porque cuidados em casa não fazem parte de determinados contratos ou coberturas”, diz.
Segundo Polanczyk, algumas práticas geram discordâncias. “Eventualmente, entram outras modalidades, que são aquelas mais controversas, que não têm tantas evidências, que os planos não querem pagar, mas as famílias querem. Alguns médicos prescrevem, outros não”, diz ele.
Entres as controvérsias, especialistas citam a equoterapia, feita com cavalos. Para Martha Hübner, professora titular da USP, não há nada no animal que ofereça algo específico para o TEA. “O que você precisa é fazer uma série de manejos para reduzir ansiedade, agressividade, redirecionar os interesses. Isso pode ser feito via inúmeros esforços, a depender da vida de cada criança”, diz a professora.
Segundo Alexandre Fernandes, coordenador do departamento científico de neurologia da ABN (Academia Brasileira de Neurologia), a psicanálise também gera polêmica. “Se a pessoa não tem uma boa linguagem, como o psicanalista vai abordar isso? Do ponto de vista científico, é controverso. Na minha opinião pessoal, acho que não funciona por causa dessa questão de a linguagem estar comprometida nas pessoas com TEA. Naquelas pessoas que têm nível 1 [de suporte] e uma linguagem muito preservada, talvez funcione”, diz ele.
Para Hübner, faltou espaço na audiência pública para o posicionamento dos profissionais da ciência. “O que me preocupa é que isso está sendo decidido e veiculado politicamente por pessoas que não são do métier científico, que não sabem o número de horas e o tempo que leva esse trabalho”, diz.
JOANA CUNHA / Folhapress