Deborah Colker questiona o primitivismo e o ideal de progresso em ‘Sagração’

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Rastejando, 15 bailarinos entram em cena, sob uma luz vermelha pau-brasil, e estabelecem os primeiros movimentos de “Sagração”, o novo espetáculo da Companhia Deborah Colker, que estreia nesta sexta-feira, no Teatro Santander. O trabalho de chão ali desenvolvido, adverte a coreógrafa, em nada se assemelha à dança moderna, cujos preceitos resgataram os bailarinos do ar e os devolveram ao solo, numa busca expressionista. Há três décadas à frente do grupo, Colker tem uma atitude pragmática diante da tradição europeia.

Seu trabalho não se encerra nos códigos de outrora, embora a representação do Brasil contemporâneo só se realize num exercício de alteridade. A artista criou uma nova encenação para “A Sagração da Primavera”, de Igor Stravinsky, uma deflagração do presente, em que a humanidade, a despeito do progresso capitalista, está posta em xeque pela crise climática. Por isso, Colker investiga o que é ser primitivo, quando a cultura ocidental se desfaz em ruínas.

A obra do compositor russo estreou, em 1913, em Paris, na França. Desde a origem, a música foi pensada para um balé, montado, pela primeira vez, por Vaslav Nijinsky. Era uma entre as muitas colaborações de Stravinsky com os Ballets Russes, a companhia do magnata Sergei Diaghilev. A composição se tornou um dos marcos fundadores da música moderna e já foi encenada em 180 coreografias, incluindo obras de Pina Bausch e de Kenneth Macmillan.

“Sei que estou mexendo na bíblia”, diz Colker, numa entrevista por videoconferência. “Stravinsky fez uma bagunça grande no mundo, e eu senti que precisava fazer também.” Não é absurda a ideia de alcançar os dilemas do Brasil, numa contraposição à Rússia antiga. O próprio modernismo instituiu um ambiente de trocas musicais entre os dois países. Viajando pela Europa, Heitor Villa-Lobos se encantou pelo primitivismo russo de Igor Stravinsky, que foi uma influência para algumas de suas composições, como os “Choros”.

Em contraste com a música das alturas, típica do sinfonismo alemão, os dois artistas elegeram a rítmica como elemento estruturante de seus processos composicionais. Decerto, os dois compartilhavam uma atitude regressiva, numa busca pela identidade nacional. O russo encontraria, então, o paganismo de seu povo, e o brasileiro daria vazão à riqueza sonora dos povos indígenas e africanos, fusão determinante ao processo de formação social do Brasil.

Musicalmente, “Sagração” retoma as correspondências entre os dois países, agora sem a mediação de Villa-Lobos, o homem branco. O diretor musical Alexandre Elias insere o som da floresta e de instrumentos musicais indígenas, como flautas, tambores e chocalhos, sobre a gravação da obra original. É nessa música híbrida e sintética que a coreografia se articula.

O balé original seguia o esquema da partitura, dividida em duas partes —”Adoração da Terra” e “O Sacrifício”—, contando a história de uma virgem que dança até a sua morte, numa oferenda ao deus Sol. Colker rompe a proposta original e não encena o sacrifício. “A própria evolução civilizatória é um sacrifício”, ela afirma. “A gente ama Nova York, ama o celular, mas o capitalismo cobra um preço. Todos nós precisamos respeitar a natureza.”

Nesse sentido, Colker afasta narrativas, mas indica um caminho dramatúrgico. Seu espetáculo mostra a evolução do homem. Na primeira parte, ela dilui as nacionalidades, nesse jogo entre Rússia pagã e o passado brasileiro. O que importa é o bicho homem. Vestindo collants, eles se apresentam como bactérias, quase lesmas, articulando braços e pernas contra o ar.

A artista explora a força da gravidade e iguala todos os homens, num processo de animalização, uma tendência presente em suas últimas obras, como “Cão sem Plumas”, inspirado no poema homônimo de João Cabral de Melo Neto, que estreou há sete anos, e “Cura”, de 2021.

Pouco a pouco, os bailarinos se tornam bípedes e empunham, cada um deles, varas de bambu, medindo quatro metros de altura. O material, afirma a coreógrafa, enverga, mas não quebra, como o Brasil. Os bailarinos representam, então, os nativos.

Toda a sequência do espetáculo se desenvolve sob uma perspectiva circular, bem ao modo dos rituais indígenas. Em um dado momento, um dos artistas fica dependurado em quatro varas, com a cabeça rente ao palco, enquanto cinco homens rodam o seu corpo, que está ao centro. O homem parece estar prestes a ser devorado, numa referência à antropofagia, chave do processo criativo pragmático.

“Temos em comum o hábito dos rituais e a consciência da força da natureza”, diz ela, descendente de bielorrussos. Colker deglute a herança do compositor, que aliou erudição à riqueza folclórica de seu país, para questionar o conceito de primitivismo. A mirada crítica se concretiza quando os bailarinos, novamente formando um círculo, derrubam violentamente as suas varas, o que, simbolicamente, representa a destruição da natureza pela humanidade.

O trabalho da artista se integra ao contexto em que o Ocidente se abre à sabedoria ancestral. O novo espetáculo da companhia flerta com a teoria do perspectivismo ameríndio, de Eduardo Viveiros de Castro. Diante do mundo contemporâneo, o antropólogo defende a existência do pensamento indígena, e Colker, ao seu turno, se dispõe a aprender a viver em comunhão com humanos e não humanos. Entre secas históricas e enchentes destruidoras, “Sagração” é um espetáculo urgente, em um mundo de urgências.

Vencedora dos prêmios Benois de la Danse e Laurence Olivier, Colker está levando uma mensagem dos trópicos ao mundo. Em outubro, ela estreia, no Metropolitan de Nova York, a ópera “Ainadamar”, de Osvaldo Golijov. Nesse ínterim, a casa já acertou outra montagem com a diretora brasileira. Em 2026, Colker estará à frente de “Frida”, ópera sobre Frida Kahlo e Diego Rivera, composta pela americana Gabriela Lena Frank.

“Eu me apaixonei pelos cantores líricos”, diz ela. “A voz é algo tão visceral, parece uma cratera.” Mesmo com a projeção internacional, tendo comandado a abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, Colker sente falta de mais visibilidade para a dança no Brasil. “O bailarino não está na televisão, não está no rádio, não está em lugar nenhum, mas acredito na força da dança, que inclusive se aproxima muito da ópera”, afirma a artista.

No que se restringe “A Sagração”, a crítica ao conceito de primitivismo se alia ao questionamento do ideal de progresso, forjado pelo tecnocapitalismo. Tal indagação não se faz presente apenas na derrubada violenta dos bambus, mas nessa forma circular adotada pelos bailarinos, que se reitera na coreografia, numa sequência de rituais. Desse modo, Colker cria uma representação para uma característica central da música de Stravinsky.

Suas composições primitivistas não seguem uma temporalidade linear. Em outras palavras, as melodias não progridem com o tempo, é um terreno acidentado, uma realidade invisível, cuja audição extenuante se concretiza em choques sonoros. “Existe algo que não funciona”, escreveu o filósofo alemão Theodor Adorno sobre a música do autor russo.

Não por acaso, todos os movimentos de “Sagração” terminam com um corpo se debatendo numa rede. O símbolo do modernismo, mediador das musicalidades à primeira vista distantes, mostra que a nossa realidade é também disfuncional. O brasileiro, a exemplo toda a humanidade, se contorce, enredado, sem saber se um dia haverá salvação.

“A rede traz a ideia de sonhar. Só o sonho pode modificar a realidade”, diz Colker.

SAGRAÇÃO

– Quando Estreia em 14 de junho; Qua. a Sáb. às 20h e dom. às 18h

– Onde Teatro Santander – av. pres. Juscelino Kubitschek, 2041

– Preço R$ 39 a R$ 220

– Classificação 10 anos

– Autoria Deborah Colker

GUSTAVO ZEITEL / Folhapress

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