SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A decisão da gestão Lula (PT) de extinguir o programa federal de fomento ao ensino cívico-militar afeta, na prática, menos de 15% das mais de 800 escolas públicas que seguem esse modelo no país.
O governo federal deixou na mão de estados e municípios a decisão de manter ou não o sistema em suas escolas.
Por isso, logo após o anúncio, governadores e prefeitos divulgaram não apenas que vão manter militares nas escolas de suas redes, mas também a ampliação para mais unidades e até mesmo a criação de novos programas.
Para especialistas, isso é uma indicação que a decisão de acabar com o programa federal pode impulsionar a militarização da educação básica -uma bandeira do governo de Jair Bolsonaro (PL).
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), foi um dos que aproveitou a oportunidade para anunciar que vai publicar um decreto criando um programa próprio de escolas cívico-militares no estado.
Desde o início de sua gestão, Tarcísio sempre afirmou que não tinha planos de militarizar unidades da rede paulista. A reportagem questionou o governo sobre a mudança de postura, mas não houve resposta.
Para pesquisadores do tema, ao buscar uma solução amena e gradual para acabar com o programa, o governo Lula, que é majoritariamente contrário à militarização das escolas, acabou por reativar essa agenda bolsonarista na educação.
“A grande contradição desse anúncio é que, ao extinguir o programa federal, ele impulsionou a agenda da militarização. A decisão frágil do Ministério da Educação acabou por incentivar e dar espaço para que governadores e prefeitos se promovam com essa bandeira”, diz Salomão Ximenes.
Os especialistas consideram que a decisão foi frágil já que o governo apenas anunciou que vai suspender o fomento ao modelo. Para eles, o Ministério da Educação deveria regular sobre a presença de militares dentro das escolas já que, um estudo feito pela própria pasta para ancorar a decisão, apontou que o modelo fere a Constituição e diretrizes da educação brasileira.
“O MEC adota uma postura omissa em relação à militarização. A presença dos militares nas escolas desrespeita a LDB [Lei de Diretrizes e Bases] e o ministério é o responsável por preservar e garantir o cumprimento dela. Por isso, só acabar com o fomento do programa não é suficiente”, diz Ximenes.
O art. 61 da LDB, que define as qualificações necessárias para os profissionais da educação básica escolar, diz que eles devem ser habilitados para a docência. Exigência que não é feita aos militares que atuam nas escolas.
O Estatuto dos Militares também não prevê, em nenhum de seus dispositivos, que faça parte de suas atribuições a atuação dedicadas às políticas públicas de educação.
O próprio estudo do MEC alerta que a alocação de militares em funções escolares é “um flagrante desvio de sua finalidade enquanto estrutura de Estado”.
O mesmo estudo cita que 202 escolas públicas do país funcionam dentro do programa federal. Elas reúnem cerca de 120 mil alunos de ensino fundamental e médio.
No entanto, o apoio do governo federal aconteceu, na prática, para apenas 120 dessas unidades. Elas receberam pessoal das Forças Armadas para atuar na gestão e monitoria escolar.
As outras 82 unidades alocam com seus próprios recursos financeiros militares das Forças Armadas ou das policias militares nas atividades escolares. Em tese, elas deveriam receber um valor complementar do MEC pela adesão ao programa federal, mas o estudo identificou que elas receberam apenas 0,24% do orçamento que havia sido prometido.
Entre 2020 e 2022, o MEC disponibilizou cerca de R$ 93,4 milhões para essas escolas, mas apenas R$ 245 mil foram efetivamente pagos.
“O Pecim, formulado pelo governo Bolsonaro, tinha dois modelos. Um que colocava militares das Forças Armadas dentro das escolas, esse formato foi desmobilizado pela gestão atual com a decisão anunciada”, disse Salomão.
“O segundo modelo tinha muito mais uma dimensão de induzir a militarização pelo país. O MEC não cedia pessoal, mas previa uma gratificação para as escolas que aderissem ao modelo. Mesmo sem o repasse de recursos extras, a estratégia de difundir o modelo parece ter funcionado”, explica ele.
Um levantamento feito pela Repme (Rede Nacional de Pesquisa Sobre Militarização da Educação) em março deste ano identificou 816 escolas estaduais e municipais com programas de militarização.
“A política de militarização começou na década de 1990, muito antes da iniciativa do governo Bolsonaro. Mas é inegável que a postura do ex-presidente colaborou para a difusão desse modelo”, diz a pesquisadora Catarina Santos, professora da UnB e ligada à rede responsável pelo levantamento.
“Acontece que o formato está sendo ampliado com diversos programas, formatações e sem nenhuma regulação ou controle do MEC”, diz ela.
Em 2015, o Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU (Organização das Nações Unidas) divulgou informe em que expressa preocupação com o avanço dessas unidades no Brasil. Especialistas condenam a militarização da educação, com a presença de policiais nas unidades escolares, e afirmam que escolas convencionais também podem melhorar seus resultados se receberem atenção especial.
As unidades ganharam evidência nos últimos anos por causa de indicadores educacionais positivos e por atacarem o problema da indisciplina. Unidades da federação como Paraná e Distrito Federal, por exemplo, já anunciaram que não vão abandonar o modelo independentemente da decisão do governo petista.
Nesses estados, a militarização ocorre justamente com a presença de policiais militares e bombeiros, que podem inclusive ser da ativa, e não com agentes das Forças Armadas, como o projeto do MEC sob Bolsonaro inaugurou.
A reportagem questionou o MEC sobre sua responsabilidade de regular a presença de militares nas escolas públicas do país, mas a pasta não respondeu se pretende adotar novas medidas. Nesta quinta-feira (11), o ministro Caamilo Santana disse, em entrevista, que a decisão de extinguir o programa ocorreu após o alerta de que não há base legal para a pasta repassar recursos para o Ministério da Defesa.
Redação / Folhapress