Há 75 anos, em sessão da Assembleia-Geral da ONU em Paris, na França, era assinada a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O documento de 30 artigos buscava uniformizar as garantias individuais depois da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto que matou cerca de seis milhões de judeus. A declaração, sem efeito jurídico, também foi meio para a expansão de diversos outros tratados, esses com vinculação legal, assegurando direitos sociais, econômicos e ambientais.
Entretanto, em meio à erosão do multilateralismo e ao questionamento da efetividade das organizações internacionais, o conteúdo da carta –documento mais traduzido no mundo, para mais de 500 idiomas– vem sendo cada vez mais ignorado por uma série de países em conflitos internos e externos.
O texto começou a ser costurado em 1946 e teve a participação da ex-primeira-dama dos Estados Unidos Eleanor Roosevelt, com inspiração na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e na carta de independência americana.
Foi aprovado por 48 votos em uma assembleia com 58 países. Não houve votos contrários, e oito países se abstiveram diante da divisão causada no início da Guerra Fria. Ainda, dois não estiveram presentes na deliberação.
A declaração condena a escravidão e a tortura, defende o asilo para indivíduos perseguidos e o direito à educação gratuita, à liberdade de reunião e à propriedade privada.
Para o documento, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, “sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”.
Setenta e cinco anos depois e em meio a uma série de guerras e conflitos, armados ou não, ainda há uma quantidade relevante de pessoas impedidas de usufruir das garantias estabelecidas pela carta.
Entre esses conflitos estão Guerra da Ucrânia, a guerra Israel-Hamas e a guerra civil na Síria. As questões migratórias, em especial as restrições de entrada de refugiados em países pelo mundo, a xenofobia e o racismo também desafiam o que preconizava o texto.
“Eu já não nasci na situação de um ser humano normal”, diz Khaled Sallem, 45, palestino nunca reconhecido como cidadão da Síria, onde nasceu, 30 anos após a assinatura da declaração. Era considerado refugiado no país e saiu fugido em 2014, após a eclosão da guerra civil. Tentou a vida no Líbano, mas se estabeleceu no Brasil.
Engenheiro biomédico de formação, Sallem conseguiu trazer primeiro a esposa e os três filhos para terras brasileiras e, neste ano, trouxe também sua mãe ano, sua mãe. Quando questionado se pretende voltar ao Oriente Médio, em especial à Palestina, diz não ter vontade e que os confrontos da região são impeditivos. “Não consigo voltar para a minha terra, que também foi a terra do pai, e do meu avô.”
Para Sallem, o exercício pleno dos direitos humanos está prejudicado. “Infelizmente, às vezes poderes políticos atrapalham isso. Eles costumam ajudar, mas na minha trajetória, por exemplo, não recebi ajuda.”
Um dos principais triunfos da Declaração Universal dos Direitos Humanos foi expandir o quadro jurídico internacional de garantias, com tratados –esses, sim, vinculantes– contra a discriminação racial, a tortura, a violência contra a mulher e pactos em favor de direitos econômicos, sociais e ambientais.
Mesmo assim, as violações ao direito internacional humanitário, ao direito internacional dos refugiados e de outras normas jurídicas internacionais aumentam em todo o mundo.
Segundo o Acnur, a agência da ONU para refugiados, em setembro deste ano 114 milhões de pessoas foram deslocadas devido às guerras e violações dos direitos humanos a nível mundial.
“Sabemos bem que as consequências humanas de conflitos armados, de perseguições e violação dos direitos humanos são incalculáveis, num contexto em que o Acnur e outras agências humanitárias são levados ao limite em termos de capacidade, recursos e exposição a restrições políticas e de segurança”, diz Davide Torzili, representante do órgão no Brasil.
A agência estipula ainda ser necessário reforçar a importância de cada um dos 30 artigos do documento. Para Torzili, conflitos armados com uma sequência de violações de direitos básicos mais recentes são uma afronta à Declaração Universal e à humanidade como um todo.
“As regras estabelecidas nos tratados de direito internacional humanitário buscam garantir que os efeitos dos conflitos armados sejam minimizados, protegendo as pessoas que não participam das hostilidades ou estão fora de combate, ou impondo limites, por motivos humanitários, aos meios empregados durante um conflito armado”
Para Guilherme de Almeida, professor de direito internacional na USP, o documento tem importância por inaugurar a visão da pessoa não mais como objeto, mas como sujeito no direito entre os Estados.
Ele diz que todo o quadro de garantias inauguradas desde a declaração está fragilizado, mas que, para além de criar novas normas, é necessário fazer releituras das que já existem, sob o olhar de um novo cenário internacional, com a crise climática e a erosão do multilateralismo implementado desde 1945.
“O legado da Declaração é a aposta no adjetivo universal e na natureza jurídica de soft law [a ideia de normas sem vinculação, mas com consenso político], a importância de instrumentos jurídicos, de narrativas literárias e sociais que se dirijam para a sociedade civil global, não só para os Estados.”
Entenda a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completa 75 anos
– O que é a declaração?
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um documento, aprovado pela Assembleia-Geral da ONU, com 30 artigos delimitando a proibição da tortura, a igualdade de todos os seres humanos perante a comunidade internacional, e o direito à liberdades individuais, propriedade privada e educação, dentre outros
– Qual a importância dela para os direitos humanos pelo mundo?
A Declaração não possui vinculação jurídica com os Estados que a assinam, ou seja, não possui efeitos legais. Porém, um dos principais legados do documento foi ter expandido uma série de atos normativos com efeitos jurídicos no direito internacional sobre direitos humanos, formando uma rede jurídica de proteção às garantias individuais e sociais
– Qual a situação da carta atualmente?
A carta continua em vigor, mas com a erosão da eficiência das organizações internacionais e do sistema multilateral construído desde o fim da Segunda Guerra Mundial, uma série de direitos está sob violação; ainda, lideranças e correntes contrárias a garantias básicas da carta emergem no cenário global, desafiando a proteção e efetivação dos direitos humanos
– Quais são os conflitos mais emblemáticos com violações de direitos humanos?
Israel-Hamas (mais de 17 mil mortos, segundo a ONU) Guerra da Ucrânia (200 mil mortos, segundo o jornal The New York Times) Síria (300 mil mortos, segundo a ONU em 2022) Iêmen (233 mil mortos, segundo a ONU em 2022) Sudão (4.000 mortos, segundo a ONU em agosto de 2023)
ANDREZA DE OLIVEIRA E MATHEUS TUPINA / Folhapress