SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Mulheres evoluíram do lugar de serem esposas ou herdeiras para serem criadoras de riquezas e tomadoras de decisões. Mas, muitas vezes, a própria riqueza que geram é mais um motivo de violência contra elas, relatam advogadas e consultoras financeiras.
Correspondendo hoje a 43% do total da população ocupada no país, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a parcela feminina da população conquistou mais cargos de liderança e já pleiteia paridade salarial, mas em grande parte ainda delega a gestão de suas próprias riquezas aos parceiros. E isso as deixa vulneráveis a abusos envolvendo o patrimônio.
O assunto ganhou destaque após a apresentadora Ana Hickmann dizer em entrevista no último domingo (26) que foi vítima de violência patrimonial, além de violência física e das violências psicológicas já denunciadas. A apresentadora insinuou que o ex-marido destruiu seu patrimônio e o acusou de falsificar assinaturas.
“Quando a gente fala em independência financeira feminina, a gente fala de uma história marcada por conquistas muito recentes. Até a década de 1960, nós, mulheres, não podíamos ter CPF e conta em banco. E as casadas precisavam de uma autorização do marido para trabalhar. Isso tudo é de uma violência enorme”, diz Carolina Cavenaghi, fundadora e CEO da Fin4She -plataforma que impulsiona mulheres para o mercado de trabalho e as conecta com grandes empresas do mercado financeiro
“Então, a gente não pode falar do contexto atual sem olhar essa história. O lugar de tomar a decisão sobre o dinheiro nunca foi nosso, ele foi conquistado muito recentemente”, completa.
Esses resquícios da história ainda fazem com que muitas confiem no parceiro ou em alguma outra figura masculina próxima a gestão do seu dinheiro.
Cavenaghi conta que é comum ouvir de amigas casadas com profissionais do mercado financeiro que preferem deixar o dinheiro nas mãos dos maridos, porque eles sabem melhor como gerir.
Mas a CEO da Fin4She incentiva, mesmo nesses casos, que as mulheres tenham o controle do seu próprio dinheiro, para evitar que o homem use o poder financeiro como forma de controlar o relacionamento, ou então de punir a mulher após o término.
A especialista recomenda que as mulheres, antes de planejar qualquer coisa relacionada à liderança, pensem acima de tudo na sua independência financeira.
Irmã da atriz Ingrid Guimarães, a investidora e gestora de patrimônio Sigrid Guimarães conta que muitas mulheres preferem deixar o dinheiro da família ser gerido pelos homens por acharem o assunto chato.
“E é de fato chato. Mas a mulher tem que ter o interesse de participar do que está acontecendo com o seu dinheiro. Tem muitas que falam: ‘Não gosto do assunto’. Paciência! A gente não gosta de um monte de coisas, mas é preciso se inteirar da sua vida financeira”, diz.
Sigrid orienta que as famílias contratem um profissional, como um planejador financeiro, para ajudar a investir o dinheiro, mas ainda assim ela diz que todas as partes precisam buscar entender a gestão patrimonial minimamente, como quanto possuem, se conseguem poupar ou não, quais seus gastos mensais, onde seu patrimônio está investido e até mesmo saber se alguma recomendação de investimento por um consultor parece ser razoável.
Ela diz que o planejador financeiro tem a função de ser claro sobre as aplicações financeiras de seus clientes, e tirar todas as dúvidas que possam existir. E no caso de famílias que não têm condições de contratar um consultor, Guimarães aconselha que se adote um método muito simples: papel e caneta.
“No caso de um casal, um dos dois pode fazer a função de reunir todos os gastos e o que entra de receita para a partir daí se fazer uma gestão mais consciente do dinheiro. Mas mesmo que seja o homem a assumir essa tarefa, a mulher precisa se inteirar sobre o que tem, se inteirar sobre o que gasta para viver, se inteirar sobre as decisões financeiras que estão sendo tomadas, participar dessas decisões e participar das reuniões sobre discussão financeira”, afirma.
Controle do dinheiro é usado para manter mulher em relacionamento, diz investidora
Guimarães fala da importância da independência financeira feminina para libertá-las de relacionamentos que muitas vezes aprisionam as mulheres, seja um casamento ou uma relação de trabalho. Ela lembra que a violência patrimonial muitas vezes é utilizada como ferramenta quando o homem não sabe mais por onde atingir a mulher.
Embora não esteja enquadrada na lei, a violência patrimonial existe de várias maneiras, desde as mais veladas até as mais explícitas, e afeta mulheres cotidianamente. Advogados que lidam com casos desse tipo precisam usar os vários artifícios legais para contornar a situação.
“Isso acontece diariamente aqui. É muito difícil chegar uma mulher recém-separada que tenha noção do patrimônio do marido”, diz a advogada Priscila da Fonseca, que tem um escritório especializado em Direito Familiar na cidade de São Paulo.
“Violência patrimonial é mais comum do que se imagina. Ainda tem muita mulher com sonho de cinderela, infelizmente, que pensa que o casamento nunca vai acabar e se torna totalmente dependente do marido”, relata Fonseca.
Ela recebe diversos casos em seu escritório de mulheres que não têm conta corrente e nenhum bem em seu nome, e precisam pedir dinheiro a amigos para poder recorrer à Justiça. Várias delas abrem mão de sua carreira para conseguir acompanhar o marido empresário nas sucessivas mudanças de países e, quando se separam, se veem sem nada. Algumas dependem do marido a tal ponto que, na separação, não conseguem nem preencher um cheque.
“Eu aconselho sempre que a mulher trabalhe e tenha seu dinheiro, para ser independente. Mas nesses casos extremos, o aconselhamento técnico que dou é a pessoa fazer um pacto pré-nupcial, se ela opta pelo regime de separação total de bens, para ter direito a uma indenização”, afirma a advogada.
Apesar de lidar com casos de famílias com um grande patrimônio acumulado, a violência patrimonial afeta mulheres de todas as classes sociais. A planejadora financeira e gerente comercial da Fin4She, Aline Santos, dá como exemplo sua própria história de vida.
Filha de porteiro, que trabalha em um prédio na zona sul do Rio de Janeiro, Aline conta que começou a namorar muito cedo, aos 15 anos de idade, e antes mesmo de pensar em ingressar no ensino superior engravidou. Sempre incentivada pelo pai a estudar, quando seu filho ainda era pequeno, decidiu entrar na faculdade de administração de empresas, mas enfrentou a resistência do namorado.
“Todas as vezes que eu queria estudar, fazer um curso ou querer ser diferente daquilo que eu era ele dizia: ‘Você vai me abandonar, você vai me largar porque você vai ser uma pessoa melhor do que eu'”, lembra Santos.
Ela diz que o início da faculdade foi um transtorno por causa do seu relacionamento. “Ele ficava atrás dos pilares da universidade me vigiando. Ele me criticava quando eu conversava sobre trabalho do curso com rapazes da minha sala. Ele tinha as senhas de todas as minhas redes sociais, então ele via tudo o que eu escrevia, com quem conversava. E eu ficava presa naquele relacionamento, achando que se eu me separasse iria tirar a família do meu filho”, conta.
Quando finalmente teve forças para sair da casa onde os dois moravam, Aline diz que ficou um tempo sem ter coragem de voltar a estudar, porque a sombra do ex-namorado sempre a perseguia. “Eu ouvia ele dizendo: se você voltar para a faculdade, estará abandonando o nosso filho”.
Após muita terapia e apoio de familiares e amigos, Aline Santos conseguiu se formar como técnica em administração de empresas e obter certificação da Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais). Ela conta que conheceu o planejamento financeiro através de um amigo.
“Aí que eu fui entender a importância de eu ter o meu dinheiro mesmo, de guardar esse dinheiro, de me tornar uma pessoa investidora e de reorganizar a minha situação financeira”, lembra.
Hoje, além de Santos controlar o seu próprio patrimônio, ela ainda auxilia os pais na gestão e investimento do dinheiro. “Meu pai sempre foi uma pessoa organizada, mas não investia. Aí ele abriu uma conta em uma corretora e o grande objetivo dele era quitar o apartamento. Então, há uns dois, três anos ele começou a investir, e neste ano conseguiu pagar o apartamento. E agora ele planeja comprar um segundo imóvel como forma de investimento”.
Carolina Cavenaghi, CEO da Fin4She, destaca a importância da participação das mulheres na gestão do patrimônio familiar não apenas para que elas tenham independência financeira, mas também porque a especialista enxerga uma complementaridade interessante de personalidades que tende a potencializar os ganhos da família.
Um raio-X do perfil de investimentos por gênero feito pela Anbima é bem representativo nesse sentido. Tanto homens como mulheres têm como dois objetivos principais para o investimento o mesmo: o sonho da casa própria (28% para mulheres, contra 30% para os homens), e acúmulo de uma reserva de emergência (20% em ambos os casos).
Mas algumas prioridades mudam em outras comparações, segundo a Anbima. Para as mulheres, viajar pelo mundo (9%) e fornecer educação para si e filhos e netos (8%) estão acima, por exemplo, da necessidade de investir em um negócio próprio (7%) ou na aposentadoria (6%). Já no caso dos homens, o planejamento para a velhice e empreender (ambos com 9%) são os terceiros motivos mais citados para investir, à frente das viagens e dos estudos.
“Esse mix, quando você olha para um casal, é muito mais inteligente para o futuro do que quando apenas uma pessoa cuida do patrimônio. As cabeças às vezes são muito diferentes, e isso se complementa”, diz Cavenaghi.
STÉFANIE RIGAMONTI / Folhapress