SÃO CARLOS, SC (FOLHAPRESS) – Um dente de preguiça-gigante de 13 mil anos de idade, encontrado dentro de um antigo lago temporário nordestino, foi remodelado por seres humanos, o que traz uma nova pista sobre a interação entre esses mamíferos descomunais e a nossa espécie durante a pré-história brasileira.
A conclusão vem de uma detalhada análise de marcas microscópicas no dente, publicada na revista científica de acesso aberto Scientific Reports. Ainda não está claro o que os responsáveis pelas marcas no dente pretendiam fazer com ele, mas as modificações no formato e as pequenas marcas de cortes na superfície parecem ser compatíveis apenas com o uso de artefatos por pessoas.
Assinam o estudo os paleontólogos Mário Dantas, da Universidade Federal da Bahia, e Thaís Pansani e Mírian Pacheco, da Universidade Federal de São Carlos, entre outros pesquisadores.
“O Mário começou a investigar esse dente há alguns anos, mas só agora, com todas as técnicas avançadas à disposição, Thaís e ele conseguiram estudá-lo a fundo e levantar evidências fortes das modificações humanas nesse espécime”, contou Pacheco à Folha.
O dente é de um animal da espécie Eremotherium laurillardi (com tamanho comparável ao de um elefante-africano moderno) e foi encontrado na localidade sergipana de Poço Redondo. Há ali um dos chamados tanques naturais, depressões em que a água da chuva podia se acumular nos meses mais úmidos do ano e que, em vários pontos do Nordeste, reúnem diversas espécies da fauna de megamamíferos do fim da Era do Gelo.
Também em Poço Redondo, os pesquisadores já identificaram ossos de diversas outras espécies de preguiças-gigantes, parentes avantajados dos tatus atuais (gliptodontes e pampatérios), cavalos, lhamas, felinos e espécies ainda mais estranhas dessa época. Por fim, também há a presença de artefatos de pedra produzidos por seres humanos.
Apesar da datação do dente de preguiça pelo método do carbono-14, o mais usado para restos orgânicos relativamente recentes, não é simples estabelecer uma relação entre o animal e a presença humana, até porque os tanques naturais podem ter funcionado como uma espécie de “ralo de pia” da região no passado, abrigando restos de animais mortos que eram carreados até lá pela chuva.
Classificado como um molariforme (mais ou menos equivalente aos molares humanos), o dente tem uma curiosa forma triangular, bem diferente dos molariformes não modificados, que são cilíndricos. Além disso, há uma série de marcas paralelas numa das laterais do dente, e essa mesma região parece ter ficado mais lisa que o normal.
Vários desses detalhes são visíveis a olho nu, mas faltava uma comparação detalhada da estrutura microscópica das diferentes marcas com outros tipos de danificação para colocar à prova a ideia de que as alterações foram mesmo feitas pela mão humana.
Foi isso o que os pesquisadores fizeram no novo estudo, por meio de uma série de técnicas de microscopia, inclusive com o auxílio de síncrotrons (um tipo de acelerador de partículas) localizados na França, onde estão outros coautores da pesquisa.
Os padrões detalhados de alterações revelados por essas análises batem com modificações produzidas por artefatos humanos, as quais, mais tarde, foram recobertas pela influência do ambiente em que o dente ficou depositado no passado.
Ainda não é possível afirmar com certeza se as modificações no molariforme de preguiça foram feitas logo após a morte do bicho, ou mesmo se ele foi abatido por seres humanos ou apenas serviu de matéria-prima depois de ser caçado por grandes carnívoros, como os dentes-de-sabre (que também existiam na região nessa época).
De qualquer forma, trata-se de mais uma peça no quebra-cabeças da interação entre o Homo sapiens e a megafauna da Era do Gelo no Brasil pré-histórico. Até hoje, as evidências de interação direta são poucas. Alguns dos autores do novo estudo já tinham publicado um trabalho que mostrava a transformação de ossinhos de outra espécies de preguiça-gigante em contas de pingente, num sítio arqueológico de Mato Grosso.
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress