SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em depoimento à CVM (Comissão de Valores Mobiliários) em 8 de março, o ex-presidente da Americanas, Sergio Rial, levantou um assunto que ficou fora dos holofotes no primeiro momento, quando a companhia anunciou o escândalo contábil em 11 de janeiro, mas que pode trazer novas informações sobre a real condição financeira da empresa.
De acordo com o relato, ao qual a reportagem teve acesso, Rial diz que dias antes de assumir o cargo de CEO na companhia, em 2 de janeiro deste ano, começou a questionar a antiga direção da varejista sobre a possibilidade de acontecer a chamada “quebra de covenants” de alguns títulos de dívida, um problema que poderia detonar o vencimento antecipado de bilhões de reais e levantar um risco de insolvência imediata da companhia.
Segundo o executivo, ele levantou a questão no dia 23 de dezembro. Naquela data, a Americanas publicou editais para convocar assembleias de debenturistas com o objetivo de alterar cláusulas de duas debêntures de modo a permitir o resgate antecipado, ou seja, a empresa adiantaria o pagamento dos títulos que só venceriam em maio e junho de 2023.
À CVM, Rial afirmou que a convocação o surpreendeu. Ele disse que estranhou a iniciativa e se irritou por não ter sido informado, já que assumiria a empresa poucos dias depois no lugar de Miguel Gutierrez, o então CEO. As assembleias foram agendadas para 13 de janeiro, já sob sua gestão.
“Nessa última semana de dezembro, eu confronto o Miguel: ‘uma assembleia de debenturistas? Por que isso?'”, disse Rial.
Segundo ele, Fabio Abrate, ex-diretor financeiro, foi chamado para participar da conversa. E a explicação tem a ver com um mecanismo chamado covenants: obrigações aplicadas ao tomador de crédito, como, por exemplo, a limitação ao endividamento ou a manutenção do capital de giro em patamar mínimo. Quando quebrados, eles podem detonar o vencimento imediato de todas as dívidas negociadas no mercado de capitais.
A explicação ouvida foi que a empresa tinha eliminado 92% dos covenants que tinha em suas dívidas, mas ainda restavam 8% nestas duas debêntures e em um CRA do Hortifruti. A intenção da antiga diretoria era antecipar os pagamentos dos títulos para “se livrar” dos covenants, de acordo com o relato de Rial.
No caso das debêntures da Americanas, a regra dos covenants limitava a 3,5 vezes o indicador que relaciona a dívida líquida ajustada ao Ebitda (lucros antes de juros, impostos, depreciação e amortização). Porém, o balanço do terceiro trimestre de 2022 mostrava que o indicador estava longe disso, em 1,7.
“[Como foi] o quarto tri? Não tem quebra de covenant? Não existe aqui um risco de quebra de covenant?”, Rial perguntou em uma conversa com Abrate e Gutierrez, mas diz que não teve a resposta. Segundo ele, lhe disseram apenas “vamos ver”.
Procurado pela reportagem, Gutierrez contesta a versão dada por Rial à CVM e diz que a antiga diretoria nunca escondeu do novo CEO que os covenants seriam quebrados.
“No fim de dezembro de 2022, o volume de vendas do mês já indicava que os covenants seriam estourados. O fato foi informado a Sergio Rial, no fim do mês, pelo executivo Fabio Abrate, que estava conduzindo a operação de recompra das debêntures”, disse em nota a assessoria de Gutierrez.
Segundo ele, “em 7 de novembro de 2022, foi realizada apresentação perante o comitê financeiro, que indicava que, se as vendas do quarto trimestre fossem reduzidas em 20%, a relação dívida/Ebitda chegaria a 3 vezes, próxima do covenant de 3,5”.
Gutierrez afirma que, em novembro, as vendas caíram 30% e que essa informação era do conhecimento do conselho de administração.
“Se as vendas continuassem em queda em dezembro como, de fato, viria a ocorrer, então, o covenant seria estourado. Dessa forma, ainda que o sr. Rial não tivesse sido informado pelo sr. Abrate, bastaria ver o número de vendas de dezembro para concluir, de forma aritmética, que o índice do covenant seria superado”, diz a nota de Gutierrez, que deixou a companhia no fim de dezembro.
Ele afirma ainda que o episódio da recompra das debêntures denota aspectos importantes do caso. “[Um deles é que] a companhia estava em uma situação de crise financeira, independentemente da descoberta de supostas inconsistências contábeis em janeiro de 2023. [O outro é que], no segundo semestre de 2022, Sergio Rial já respondia como efetivo CEO da Americanas, acompanhando de perto e aprovando a realização de operações financeiras (como aquela relativa à recompra das debêntures)”, afirma o comunicado do ex-executivo.
Em seu depoimento à CVM, Rial afirmou que, em dezembro, ele não tinha acesso aos números do quarto trimestre. Procurado pela reportagem, o executivo reafirmou o relatado.
“Em documento de novembro de 2022, apresentado ao comitê financeiro e a Sergio Rial, ainda durante o período prévio de ambientação, a então diretoria informava expressamente que a Americanas teria, em 1º de janeiro de 2023, R$ 9 bilhões em caixa e um Ebitda de R$ 3 bilhões positivos. A antiga diretoria também informava que a dívida líquida da companhia cairia de R$ 5,298 bilhões, no terceiro trimestre, para R$ 4,794 bilhões, no quatro trimestre. Com isso, o índice de alavancagem seria reduzido para um patamar de 1,6 vez, bastante inferior ao limite de 3,5 vezes que poderia gerar quebra de covenant”, escreveu sua assessoria em nota.
De acordo com o executivo, em dezembro de 2022, ele trocou mensagens com Abrate a respeito da evolução do índice de alavancagem, “tema de extrema importância para o entendimento da situação da empresa que em poucos dias iria liderar. Mas, em momento algum, antes do dia 4 de janeiro, lhe foi transmitido o verdadeiro patamar de alavancagem da companhia, relacionada às operações de risco sacado até então ocultadas de todos pela antiga diretoria”, diz a nota.
Foi no dia 2 de janeiro que ele diz ter ouvido falar, pela primeira vez, que o quarto trimestre poderia vir a ser o pior prejuízo líquido trimestral da história da varejista. “Me dou conta de que a empresa, mais do que transformação, vai precisar também de reestruturação, se é o número que está sendo dito”, relatou Rial à CVM.
O tema dos covenants reaparece no relato de Rial à CVM quando ele narra a reunião em que lhe revelaram as inconsistências contábeis.
Segundo ele, no dia 4 de janeiro, por volta das 9h ou 10h, o novo diretor financeiro André Covre estava reunido com os debenturistas quando, em uma outra reunião realizada no mesmo momento, o diretor estatutário José Timótheo de Barros começa a revelar a Rial o problema que levaria ao fato relevante de 11 de janeiro.
“Ele [Covre] já estava tendo as conversas com os debenturistas. E ali o tema era: queremos antecipar [o pagamento]. O script que nos foi dado [pela antiga diretoria] é: por conta dos covenants etc. Conjuntamente, nós acertamos. Eu falei: se vier a pergunta da quebra dos covenants, a resposta é que não sabemos porque não temos o quarto tri, mas pode acontecer. Isso [Covre] deixou claro [aos debenturistas]”, afirmou Rial.
Rial comparou a um soco a informação de que a dívida bancária da Americanas era maior do que ele estava ciente. “Então a dívida bancária da empresa não são 19 [bilhões de reais]? São 19 mais 16 bilhões potencialmente? Então a dívida bancária da empresa são R$ 35 bilhões?”, afirmou o executivo, descrevendo a cena da reunião com a antiga diretoria.
“A gente tem um PL [patrimônio líquido] de R$ 16 bilhões. Aí vem outro soco. Vocês fazem a convocatória de assembleia aos debenturistas para eu cuidar? E o André [Covre] em calls agora de manhã com debenturistas? Menos mal que ele está dizendo: é possível que ocorra uma quebra de covenants. Vocês não se dão conta do tamanho do problema?”, disse Rial.
No dia 9 de janeiro, a empresa cancelou as assembleias que estavam marcadas para o dia 13.
Procurado pela reportagem, Timótheo de Barros afirma que é preciso esperar o resultado das apurações. “Não obstante seja claro que comportamentos adotados por alguns no começo do ano estejam distantes da verdade, é necessário aguardar a apuração para mostrar a realidade em que se encontrava a empresa e quem agiu, ou não, no interesse dela”, disse em nota.
A defesa de Fábio Abrate não se manifestou.
JOANA CUNHA E JÚLIA MOURA / Folhapress