SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os depoimentos dos ex-presidentes da Americanas Miguel Gutierrez e Sergio Rial para a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) pouco elucidam o escândalo contábil da varejista, mas revelam uma série de ressentimentos na cúpula da companhia.
O mal-estar de ambos os lados, que cresceu após o estouro da crise em 11 de janeiro de 2023, aparece desde a escolha de Rial como sucessor de Gutierrez.
Foi no dia 1º de julho de 2022 que informaram Gutierrez da indicação de Rial como novo CEO. Segundo ele, a notícia lhe foi dada pelo empresário Carlos Alberto Sicupira, que forma o grupo dos três maiores acionistas da empresa, com Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles.
“O Beto me segurou e disse: ‘Quero falar contigo, estou tomando uma decisão, sei que você é contra. Vou nomear Sergio Rial como seu substituto'”, relatou Gutierrez à CVM em março do ano passado, em depoimento ao qual a reportagem teve acesso.
Incomodado, Gutierrez diz que não retornou mais à sede da empresa naquela tarde de sexta-feira. “Fiquei realmente aborrecido. Eu normalmente trabalho sábado. Decidi não trabalhar”, disse.
Até aquele momento, ele ainda achava que entre os candidatos para sucedê-lo estariam os três diretores estatutários que o acompanhavam na empresa havia anos (Anna Saicali, Timótheo Barros e Márcio Meirelles), e que a escolha seria feita em um processo no qual ele também opinaria.
Gutierrez diz que, antes, havia sido informado de que Rial seria convidado apenas para uma cadeira no conselho da Americanas. “O pessoal mentiu para mim”, disse o executivo.
A nomeação de Rial foi divulgada ao mercado em agosto de 2022, quando começou uma “dinâmica perversa”, nas palavras de seu antecessor.
“Ele [Rial] é muito presente nas mídias sociais. E a partir daquele dia já começou uma interação dele com a equipe toda. Da pessoa que está saindo ninguém quer saber. Todo mundo quer saber de quem está entrando”, afirmou Gutierrez no depoimento.
Entre os comportamentos de Rial que o incomodaram, Gutierrez se queixou de tê-lo visto criar a expressão “nação Americanas” para se referir ao que a gestão antiga costumava chamar de “universo Americanas”.
“Quando vira ‘nação Americanas’, vira um negócio meio nação rubro-negra. Não tenho nada contra flamenguista. Lamento não ter sido. Mas essas dinâmicas começaram a acontecer”, disse.
A saída de Gutierrez já era prevista havia anos, mas ele reagiu com ceticismo à ideia de ser substituído por alguém que não tinha carreira na varejista. “Tínhamos um consultor externo, e ele mostrava que, estatisticamente, trazer pessoas de fora em um nível mais alto nunca dá certo”, disse à CVM.
Rial, por sua vez, afirmou que sentiu do antecessor uma “cordialidade sem substância” e que teve dificuldade em receber da antiga diretoria os números da companhia.
“O que ele deixou muito claro desde o início, até pela natureza dele, e a minha, foi: ‘Aqui há um chefe, e esse chefe sou eu até 31 de dezembro de 2022’. Eu falei: ‘Exatamente, vai ser assim, não vai haver dualidade e eu vou me policiar, porque tenho um jeito de uma pessoa ativa, com liderança forte, experiência”, afirmou Rial no depoimento à autarquia.
Ainda de acordo com Rial, Gutierrez não lhe mandou uma mensagem de boas-vindas nem lhe telefonou quando a Americanas anunciou ao mercado que seria ele o novo CEO. “Mas, como eu já sabia o que estava acontecendo, também não fiquei magoado”, disse Rial.
Em outros momentos de seu relato à CVM, reiterou que tinha dificuldades para marcar compromissos com Gutierrez quando lhe mandava mensagens, recebendo resposta de que a agenda estava tomada de outras demandas, além de outras demonstrações de falta de contribuição no processo de transição.
“Aí você fala: ‘Pô, Sergio, isso não te gera…?’ O cara está sendo… canalha, no sentido coloquial. Mas até onde é resistência simplesmente? E é o que eu assumi: esse cara está fazendo minha vida difícil”, disse Rial no depoimento.
A versão de Gutierrez também descreve um distanciamento progressivo ao longo dos meses que se seguiriam até sua saída do cargo.
Com o tempo, diz ele, os diretores estatutários foram intensificando suas reuniões com Rial e já não se lembravam de avisar Gutierrez das agendas que tinham com o futuro presidente. No fim, afirma Gutierrez, Rial já marcava as próprias reuniões e tinha interações com a equipe inteira.
“Criaram um grupo de WhatsApp deles. E é natural. Não reclamo disso”, diz Gutierrez.
Neste distanciamento, até a proximidade que ele tinha com Sicupira desapareceu após o aviso da chegada de Rial, conforme seu relato. Sicupira, no entanto, disse em depoimento à CVM que nunca houve tal proximidade.
“Alguns negócios que tínhamos engatilhados, ele [Rial] simplesmente desfez. Sempre com o apoio do conselho. Tínhamos um deal [acordo] que íamos fazer com a Mapfre. Iam botar um caixa na companhia. Ele foi para a Espanha e resolveu um monte de outras coisas”, afirma Gutierrez.
Rial, por sua vez, afirmou que viu no acordo de joint venture com a Mapfre desenhado pela gestão anterior um mau negócio para a Americanas, embora parecesse bom para o pagamento de bônus dos executivos.
Se ofereceu, portanto, para falar com o CEO da Mapfre para que as partes rediscutissem os termos, com a possibilidade de reduzir o recebimento de dinheiro no início do contrato, segundo disse à CVM.
“O desenho inicial era um pagamento antecipado contra o cumprimento de metas nos anos seguintes. Eu falei: ‘Espera aí, eu estou vendendo o almoço para pagar o jantar. Mas quem vai ter que pagar o jantar sou eu, porque a partir de janeiro sou eu que assumo a empresa'”, afirma Rial.
Em dezembro, ocorreu um outro evento que acentuou o desgaste, quando Rial marcou uma reunião com os diretores no dia 2, o que causou frustração geral. Gutierrez observou que era dia de Copa do Mundo a partida entre Brasil e Camarões.
“Falei: ‘Pô, Sergio, vai marcar reunião no jogo do Brasil’. [Ele disse:] ‘Não vejo jogo’. [Eu respondi:] ‘Mas todo mundo vê'”, relata o ex-CEO.
À CVM Rial argumenta que não tinha outra data: “Me criticaram [como se eu fosse] um cara sem coração. [Mas] eu estava interessado [no trabalho], qualquer dia era dia (…) E estava lá a televisão. Quando tinha gol, ia lá e via o gol”, diz.
No relato, Rial disse que estava muito comprometido com o projeto de transformação da Americanas, motivo que o teria levado a voltar ao Rio de Janeiro, sua cidade natal, que ele havia deixado para trás em 1989 para seguir carreira internacional.
Apesar de ter um apartamento na Barra da Tijuca, fez questão de comprar um outro imóvel, pequeno e mais próximo da sede da varejista, no centro da cidade.
Segundo Rial, seus amigos ironizavam suas decisões, dizendo que ele deveria trocar de terapeuta. “Por que você vai fazer isso? [perguntavam os amigos] Para mim era importante, porque eu achava que a empresa era relevante na cidade em que eu nasci. Eu queria me reconectar com o Rio”, diz. Ele nunca chegou a dormir no novo apartamento, que lhe foi entregue em 8 de janeiro de 2022.
Ao relembrar as dificuldades que teve nas interações com os executivos da Americanas, quando assumiu o posto, já após a saída de Gutierrez, Rial manifesta à CVM o peso que sentia.
“Eu não peço nenhuma simpatia, mas eu fui presidente de banco. Eu estou na [rua] Sacadura Cabral, numa sala modesta, comendo prato do dia na porção alumínio. Isso para mim era o projeto que eu queria transformar”, disse.
O entorno da sede da Americanas, que fica localizada em um trecho mal conservado na região central do Rio, destoa da área nobre onde ele trabalhava quando comandava o Santander, na Vila Olímpia, em São Paulo.
A tensão se estenderia até a divulgação do fato relevante, em 11 de janeiro, data em que, segundo Gutierrez, sua vida virou “um inferno”. Dois dias antes, diz que tentou falar com Rial, mas ele pediu que voltasse a ligar depois.
“No dia 11 eu retornei, ele falou que estava enrolado. Marcou para o dia 12 e me atendeu no viva-voz com advogado”, afirma Gutierrez à CVM.
Procurados, Gutierrez, Rial, Sicupira e Mapfre não se manifestaram.
JOANA CUNHA E JÚLIA MOURA / Folhapress