SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Se fosse preciso ilustrar como a história das mulheres na política mudou recentemente no Brasil, duas imagens seriam eloquentes. Uma, de 2016, mostra uma deputada de esquerda amamentando em plenário. A outra, já sob o governo Jair Bolsonaro (PL), retrata uma parlamentar bolsonarista dormindo com uma espingarda na mão e a filha no colo.
Oito anos após a cena de aleitamento materno de Manuela D’Ávila (PC do B-RS) na Assembleia Legislativa gaúcha rodar o mundo de tão pouco usual que era, a maternidade não só deixou de ser um tabu no ambiente político como foi apropriada pela direita para a defesa de bandeiras conservadoras, como criminalização do aborto.
Com ao menos três deputadas grávidas, três que tiveram filhos desde o início do mandato e uma que começou os trabalhos com um recém-nascido no colo, a atual legislatura da Câmara já tem, em um ano e meio, o mesmo número de futuras ou recentes mães do que a anterior –ao menos entre as que divulgaram sua maternidade.
Claro que ainda há sub-representação: maioria da população brasileira, as mulheres, não só mães, são só 18% dos parlamentares da Casa.
A nova realidade, porém, já deu origem a cenas impensáveis alguns anos atrás, como live em rede social para revelar o sexo da criança de uma deputada grávida ou a publicação da foto de uma bebê, filha de outra congressista, vestida com body com mensagem contra os impostos.
É um contraste com a posição da direita há não muito tempo, diz Manuela, que postava com relativa frequência fotos da rotina com a filha, inclusive amamentando. “Eles sempre compartilharam mensagens em grupos dizendo que eu era uma oportunista por isso”, afirma.
Outras colegas de seu campo político, como as deputadas federais do PSOL Talíria Petrone (RJ) e Sâmia Bomfim (SP), também dão visibilidade à sua maternidade.
Mostram os filhos nas redes e nas dependências da Câmara e reivindicam direitos como espaços para amamentação na Câmara e a sinalização correta nos painéis de votação quando uma deputada está ausente por licença maternidade –antes, a ausência era comunicada como uma falta comum.
A novidade é que, nos últimos anos, mães de direita também passaram a mobilizar a maternidade em sua atuação, contando com a vantagem que esse campo político tem nas redes sociais.
São pessoas como a deputada federal Caroline de Toni (PL-SC), presidente da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça). Em fevereiro, ela levou a filha de 50 dias ao plenário para discurso em favor da vida e dos valores cristãos. Em abril, postou foto da bebê com uma roupa com a estampa “imposto é roubo”.
Outro exemplo é a também deputada federal Clarissa Tércio (PP-PE). No ano passado, ela levou a filha de 7 anos ao plenário para acompanhá-la em discurso contra banheiros unissex.
Em tese de doutorado defendida na UnB (Universidade de Brasília), na qual analisou a mobilização da maternidade a partir dos perfis de oito candidatas no Instagram, a cientista política Alana Fontenelle concluiu que apenas duas demonstraram preocupação com a proposição de ações ligadas à maternidade.
Uma delas era Andrea Werner, deputada estadual pelo PSB-SP, ativista da causa de pessoas com deficiência.
A outra, Chris Tonietto (PL-RJ), que teve dois filhos ao longo de seus mandatos, um na atual legislatura e outro na anterior.
Fontenelle considerou que a deputada federal do PL exibia sua maternidade para reforçar seus argumentos antifeministas e em defesa de medidas de ampliação da criminalização do aborto.
As demais candidatas, na avaliação da cientista política, incluindo algumas de esquerda, mobilizavam a maternidade em busca de engajamento ou de humanização, mostrando-a como parte de suas rotinas.
A pesquisadora cita três razões para a ascensão da direita nesse campo: os avanços da pauta feminista como um todo, a onda conservadora dos últimos anos e o fato de a maternidade ser uma boa pauta eleitoral, uma vez que é relevante e tem uma relação para todos os segmentos.
Além da pauta do aborto, diversas políticas recém-mães na direita também abraçam pautas relacionadas a pessoas com deficiência.
Com frequência, esse campo político defende a educação desse público em classes especiais, separadas das demais, ou em homeschooling.
“A ideia é tirar a pessoa com deficiência da cena”, critica Mariana Rosa, mestranda em educação pela USP e cofundadora do Instituto Cáue.
Para ela, a forma como a direita aborda a questão muitas vezes tira as pessoas com deficiência da posição de protagonismo, colocando-as ou como pessoas falhas ou como “anjos especiais”, e não sujeitos de direito.
“Essa linha de assistencialismo e filantropia faz a liga com a direita, pelo entendimento de que a pessoa com deficiência é responsabilidade da mãe, não do Estado.”
Para se contrapor a isso, há um amplo caminho para se pensar em políticas públicas para as mães, diz Alana. Entre elas, estão todas que tornem o cuidado à criança menos centrado apenas na figura materna e mais coletivo.
Exemplos são espaços lactários em locais de trabalho ou espaços adequados para crianças em ambientes frequentados pelos adultos. Outra pauta fundamental, avalia, é a instituição de licenças também para os pais.
Esse tende a ser um tema que pode ser abraçado pela esquerda. “Nós pressupomos a ideia de que o cuidado não é um papel predefinido para as mulheres”, diz Manuela.
“É algo que pode ser feito comunitariamente, dividido de maneira igualitária com o pai e com amparo do Estado, não sobrecarregando apenas mulheres.”
Uma das recém-mães do Congresso, a deputada Greyce Elias (Avante-MG), que teve dois filhos ao longo de seus dois mandatos, diz que a maternidade reforçou as convicções que já tinha contra a descriminalização do aborto.
Apoiadora de Jair Bolsonaro na eleição de 2022, ela posta com relativa frequência manifestações sobre o tema ou sobre sua preocupação com o que vê como possível intromissão do Estado na educação das famílias.
Já a licença para os pais ela avalia ser um tema que demanda mais debate. “É preciso pensar uma mudança de cultura e os reflexos para a questão empresarial, mas acho que estamos no caminho certo”, afirma.
Também a cultura da própria Câmara, com votações madrugada adentro, reflete uma época em que as mães estavam longe da política, em sua avaliação. “Mas fiz uma escolha, vejo propósito e não me vitimizo”, diz.
ANGELA PINHO / Folhapress