BRASÍLIA, DF E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A votação no STF (Supremo Tribunal Federal) que considerou, por 9 votos a 2, inconstitucional a tese do marco temporal foi celebrada por representantes indígenas e aumenta a pressão no Senado em torno do projeto de lei que trata do tema.
O texto, que foi aprovado pela Câmara no fim de maio, não só estabelece o marco temporal, mas abre brecha para, entre outros pontos, o contato com indígenas isolados e a exploração energética dos territórios.
O relator do texto na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, Marcos Rogério (PL-RO), afirma que o setor produtivo está “apavorado” e que a decisão do Supremo vai forçar a Casa a tomar uma decisão.
“É uma decisão que gera insegurança jurídica no campo e, se aplicada como está, pode comprometer cidades. O Parlamento precisa concluir a lei do marco temporal e devolver a tranquilidade ao país”, disse.
Relatora do projeto de lei na Comissão de Agricultura -onde o texto foi aprovado em agosto por 13 votos a 3-, a senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) afirmou que ainda espera uma decisão do plenário do Senado.
“Ainda existe uma grande divergência que é a questão das indenizações aos proprietários de terras que ocuparam essas áreas de boa-fé e precisam ser restituídos. Por isso, no Senado Federal, temos que continuar nosso trabalho para dirimir todas as brechas.”
Ouvidos antes da votação do STF, membros da bancada ruralista afirmaram, sob reserva, que caso a tese fosse declarada inconstitucional, haveria chance de o projeto perder força e não ser aprovado.
Tanto entre ruralistas como também na base do governo há quem acredite que a proposta seja, inclusive, retirada de pauta, sob o argumento de que seu objeto, o marco, é inconstitucional.
A expectativa é de que o texto seja enterrado pelo plenário do Senado com apoio da base governista. O ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais) celebrou o julgamento e disse que o STF fez valer a legislação.
“A maioria consistente da Suprema Corte fez valer a Constituição nesse debate do marco temporal na proteção das terras indígenas”, disse à reportagem.
LIDERANÇAS E ENTIDADES COMEMORAM
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, comemorou a decisão desta quinta. “Seguimos agora comemorando, celebrando, sim, essa grande conquista. Foram tantos anos de muitas lutas, muitas mobilizações, muita apreensão para este resultado”, afirmou.
“É um resultado que define o futuro das demarcações de terras indígenas no Brasil”, completou Guajajara dos Estados Unidos, junto à comitiva brasileira na ONU (Organização das Nações Unidas).
A senadora Eliziane Gama (PSD-MA) também celebrou a decisão do STF. Para ela, a decisão faz com que o marco temporal não possa ser usado na disputa de forças em curso entre o Supremo e o Congresso.
“Marco temporal é inconstitucional. Marco temporal não é matéria para se acirrar esse tipo de estranheza [entre o Senado e o STF]”, disse. “A nossa Justiça dá um belo exemplo ao mundo.”
Do lado de fora o STF, como nos outros dias de votação, os movimentos indígenas se reuniram para acompanhar a sessão -e comemoraram, com cantos e danças, a formação da maioria contra a tese.
A presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joenia Wapichana, afirmou que é “dia de comemorar a vitória”.
“[A maioria] enterra de vez essa tese absurda, por inconstitucionalidade, em relação ao marco temporal”, afirmou. “Uma luta a cada dia, uma vitória a cada dia”, completou a presidente ao reforçar que ainda existem outras ameaças contra os direitos indígenas em curso.
Entidades socioambientais e indígenas também comemoraram a queda da tese do marco temporal no STF, mas dizem que permanecem observando o desenrolar da situação, considerando que o julgamento ainda não foi encerrado.
“A decisão de hoje fortalece a democracia e põe fim a uma das mais sórdidas tentativas de inviabilizar os direitos indígenas desde a redemocratização do país”, disse, em nota, Juliana de Paula Batista, advogada do ISA (Instituto Socioambiental).
Ariene Susui, porta-voz do Greenpeace Brasil, em nota, afirma que a rejeição da tese do marco temporal assegura direitos de toda a sociedade, “pois direitos conquistados não devem ser questionados e sim cumpridos”. “Os povos originários e seus territórios exercem um papel fundamental na defesa da biodiversidade brasileira”, completa a ativista.
De fato, as terras indígenas estão entre as áreas com menores índices de desmatamento no país. Em algumas áreas, acabam como ilhas de proteção contra a devastação da floresta amazônica, como mostra reportagem recente da Folha de S.Paulo.
A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) também comemorou o resultado em suas redes sociais, classificando o marco temporal como uma “tese ruralista”.
A Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) destacou que observa com atenção as ideias levantadas nos votos dos ministros Alexandre de Moraes e Dias Toffoli sobre as categorias de indenização possíveis para pessoas que ocupam terras indígenas e desenvolvimento econômico. “Com o máximo respeito à posição dos ministros, expressamos profunda preocupação”, diz a entidade, em nota.
A Coiab diz manter atenção em relação às ações no Legislativo. A nota da entidade cita o projeto de lei 2903/23, atualmente na CCJ no Senado, que trata exatamente do marco temporal.
DECISÃO É PREOCUPANTE, DIZ PRESIDENTE DA BANCADA RURALISTA
O presidente da bancada ruralista, deputado Pedro Lupion (PP-PR), chamou de “grave e preocupante” a decisão do STF, e afirmou que sua bancada conseguirá aprovar o projeto de lei no Senado, além de PECs sobre o tema no Congresso.
“A frente parlamentar da agropecuária vai aprovar o marco temporal no Senado na próxima semana e vamos correr com a PEC na Câmara, no Senado, para darmos segurança jurídica para os produtores rurais”, afirmou.
A proposta a que ele se refere é a PEC 132/2015, para permitir a indenização a proprietários rurais que tiveram terras destinadas a territórios indígenas homologados a partir de 5 de outubro de 2013.
Em uma coletiva de imprensa online, Lupion acusou o STF de estar “usurpando as funções do Congresso Nacional” e de ter relativizado a propriedade privada no país.
Apesar das falas do representante ruralista, o STF afastou a possibilidade da posse imemorial a indígenas, ou seja, basear a reivindicação no passado longínquo. Os ministros falaram em vínculo e ocupação tradicional -o que está na própria Constituição.
JOÃO GABRIEL, THAÍSA OLIVEIRA, MARIANNA HOLANDA E PHILLIPPE WATANABE / Folhapress