SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Lorice Scalise, a primeira mulher (e latino-americana) a presidir a farmacêutica Roche no Brasil, está cansada de ser da geração das primeiras. “Que comecem a vir as segundas, as terceiras, as quartas”, diz ela, no escritório da empresa, em São Paulo.
Para muitas mulheres, a sensação ao alcançar uma posição de liderança é que chegar ali é o fim da batalha. “Na verdade”, diz Scalise, “é onde tudo começa”. A executiva diz que existe um trabalho além do gerenciamento do braço local de uma multinacional de desconstruir estereótipos passados do que é uma pessoa que ocupa a chefia.
“É uma posição que foi ocupada por homens por 90 anos. Todas as pessoas que estão aqui na Roche olham para essa cadeira e imaginam um homem, imaginam uma atitude masculina, imaginam que eu esteja falando de outra forma”, afirma.
A expectativa por outra figura era tamanha que ela chegou a ser confundida com uma garçonete em um evento quando foi presidente da empresa na Argentina, de 2021 a 2023. Era um evento, diz Lorice, formado majoritariamente por homens e um deles virou para ela e pediu uma água. “A figura [da mulher] não é uma figura comum daquele lugar.”
A passivo-agressividade com relação à ascensão de mulheres a cargos de liderança, afirma, acaba se fazendo mais presente do que ataques diretos.
A mudança para a Suíça para assumir a liderança do setor de negócios globais da farmacêutica, em 2013, também não foi livre de críticas sutis. Mãe solteira de três filhos, ela levaria junto apenas dois deles, os gêmeos Olivia e Felipe, que hoje têm 26 anos. Miguel, atualmente com 20, ficou com o pai quando os irmãos e a mãe foram para a Suiça.
Scalise conta que recebeu todo tipo de pergunta sobre a decisão de deixar o filho, então com 9 anos, sob os cuidados do pai. “Perguntas do tipo, como você não sente falta do seu filho? Como pode ser que ele vai crescer sem mãe?” Ela, que se diz feminista, deixa claro que “uma criança, ela tem um pai e uma mãe, e ela pode ser amparada, cuidada e protegida por qualquer um dos dois”.
Formada em farmácia pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), Scalise está na empresa suíça há mais de 20 anos. Começou como representante de vendas em 2000, quando já tinha os gêmeos pequenos, e foi galgando posições cada vez mais altas. Diz, porém, que ser presidente nunca foi ambição seu objetivo era “estar em posições nas quais pudesse fazer a diferença”.
Desde que assumiu a liderança no Brasil, em abril de 2023, essa diferença mostra as caras. Além de se tornar face de uma possibilidade para diversas mulheres, a presidente incorporou os grupos de diversidade, que já existiam quando ela assumiu o cargo, ao marco de governança da Roche. Na prática, essas reuniões que abordam temas como raça, sexualidade, gênero e idade passam a contar como horas trabalhadas.
É parte da estratégia de negócios de Scalise. A executiva ressalta como a população brasileira é diversa e diz que “eu não posso ter uma estratégia de saúde assertiva se essa estratégia não reflete a população que estou servindo”.
Pensar a saúde de um ponto de vista feminino e brasileiro, para ela, também faz diferença. A profissional reforça que entende a saúde de forma tripartite, com indivíduos, setor público e setor privado. E defende que, para políticas coerentes e efetivas, o diálogo entre as partes é necessário.
Um exemplo discutido na entrevista foi o combate ao câncer de colo de útero, que matou cerca de 4,51 a cada 100 mil mulheres no país em 2021, segundo dados do Inca (Instituto Nacional do Câncer). O tumor é causado pelo vírus HPV, para o qual já existem vacinas uma, inclusive, produzida pela Roche.
Para Scalise, não existe uma estratégia séria de erradicação da doença no Brasil. Existem estratégias de vacinação desde 2014, a vacina está disponível no SUS (Sistema Único de Saúde) para meninas de 9 a 14 anos, vítimas de abuso sexual de 9 a 45 anos e usuários de Prep (a profilaxia pré-exposição, que previne infecção por HIV) de 15 a 45 anos. Em São Paulo, a faixa etária foi ampliada para 19 anos em março deste ano.
“Então, eu acho louvável que a gente tenha ampliado [as campanhas]”, diz. “Mas eu ainda questiono e talvez duvide da assertividade dessas políticas da forma como elas estão pensadas.” Mulheres que desejam se vacinar e estão fora do público alvo tem que escolher entre pagar até R$ 900 por dose ou ficar sem a proteção.
Ela questiona por que, afinal, as políticas públicas para o HPV são tão recortadas e difíceis. E responde a própria pergunta dizendo que é o resultado de políticas pensadas por homens brancos. “Por que a gente não é capaz de vacinar e prevenir câncer de colo de útero? Eu acho que é porque é um problema da mulher só”, diz.
Scalise defende que deve haver uma maior integração entre os setores público e privado para descentralizar o acesso. “Hoje, somos dependentes da iniciativa privada para a inovação. Mas não significa que a gente não pode conviver de uma forma simbiótica, que não possamos conviver de uma forma em que todo mundo ocupa um lugar de responsabilidade”, afirma.
Perguntada sobre os limites de colaboração entre o privado, que precisa do lucro, e o público, ela declara que não considera que sejam interesses conflitantes. “Podem ser complementares.”
BÁRBARA BLUM / Folhapress