Desembargadora metade negra e metade indígena narra racismo a crianças

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A cena de crianças de comunidades quilombolas com cabelos afros e olhos brilhantes participando da contação da história escrita por ela é uma lembrança que a desembargadora Jaceguara Dantas da Silva guardará por toda a vida.

“Eu vi as crianças negras apontando assim: ‘Ó mamãe, parece eu!’ Achei lindo.”

Na obra “Os Sonhos de Ágatha”, a magistrada do TJ-MS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul) se desafiou a encontrar uma mensagem de esperança para ajudar meninas negras que se deparam hoje com o racismo que ela enfrentou na infância.

Daquele período ficaram memórias que Jaceguara revisitou na pandemia, enquanto lidava com a ansiedade de estar longe da mãe. “Eu quis fortalecer essas crianças e dizer que elas não estão sozinhas. Nós temos sim caminhos a percorrer e podemos chegar onde nós quisermos.”

Nascida em uma família humilde em Guajará-Mirim (RO), a filha da dona de casa Leonir e do sargento do Exército Elias se mudou para Curitiba por decisão do pai, que pediu transferência para que os então seis filhos pudessem ter mais oportunidades nos estudos.

Foi também o pai quem deu a ela a consciência racial. Na escola, ela não se lembra de outra criança negra. “Eu era um bichinho estranho, tanto é que as crianças chamavam umas às outras para me mostrarem, porque todas tinham olhos azuis ou eram ruivas”, conta.

A mãe da magistrada é descendente de indígenas e portugueses, o que explica seus fios lisos. “Fico muito chateada quando alguém pergunta se eu aliso meu cabelo, porque eu adoraria ter aquele cabelo bem afro”, diz, animada.

Ela se aproximou nos últimos anos de sua própria identidade indígena, por meio de um projeto em parceria com o governo do estado realizado pela Coordenadoria da Mulher do tribunal, chefiada por ela. A ação busca traduzir a Lei Maria da Penha a oito etnias em território sul-mato-grossense.

“É impressionante como a ancestralidade fala forte, porque nunca tinha percebido essa minha identificação com as mulheres indígenas. Agora entendi muito bem essa divisão que existe dentro de mim, metade negra e metade indígena. Ao participar de uma atividade com elas, os cantos e rezas que fizeram me tocaram profundamente”, diz.

Foi ao interpretar uma promotora em uma peça de teatro na escola, aos 11 anos, que Jaceguara se sentiu motivada a cursar direito. Naquele momento, ela afirma que não tinha referências de outras pessoas negras na área ou muita perspectiva na vida.

Enquanto as colegas eram de famílias ricas, que viajavam nas férias, a dela não tinha recursos para fazer o mesmo. O estímulo veio quando uma amiga do ensino médio passou a lhe emprestar os livros da biblioteca do pai.

Sem saber espanhol, ela conta que leu com dificuldades o original de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. “Fiquei apaixonada pelas ideias e pela utopia. Me abriu uma perspectiva completamente diferente.”

Na graduação, em pleno movimento pelas Diretas, Jaceguara se tornou a primeira presidente do diretório acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande (MS).

Em 1989, foi uma das fundadoras do grupo Tez (Trabalho Estudos Zumbi), primeira organização do movimento negro no estado.

“Moldou a minha vida. A partir de então, na atuação profissional ou em outros espaços, sempre me chamou a atenção a ausência de pessoas negras. Quando viajava, eu falava aos meus dois filhos: ‘Olha, nós somos a única família negra neste hotel’. Eles são extremamente conscientes”, diz, acrescentando que ambos escolheram fazer direito, assim como os pais.

Ao sair da faculdade, ela tentou advogar, mas teve dificuldade pela falta de contatos e decidiu fazer mestrado na USP. A turma tinha oito alunos, cada um filho de alguma referência na área jurídica.

“Quando o professor chegou em mim, não tinha nada para falar. Eu era a da Silva, a única negra e uma das poucas, ou senão a única, que era de uma família muito humilde. Tive muita dificuldade de me situar nesse universo.”

O mestrado foi interrompido quando Jaceguara foi aprovada no concurso para ser promotora de Justiça de Mato Grosso do Sul.

Ela passou os primeiros anos da carreira no interior do estado até ser promovida para a capital.

Com o apoio das mulheres de sua família e do então marido, pôde assumir outros papéis, como o de professora voluntária de direitos humanos na UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), e retomar os estudos, concluindo em 2011 o mestrado pela PUC-SP.

Em 2013, Jaceguara se tornou a primeira promotora titular da Promotoria de Justiça dos Direitos Humanos de Campo Grande.

“Eu lidei com pessoas em situação de rua, travestis, transexuais, prostitutas, pessoas com deficiência, com o combate ao racismo e à discriminação contra a mulher. Enfim, com todos os segmentos dos grupos vulneráveis.”

Desse período, Jaceguara cita o caso de uma mulher negra que teve os dois filhos assassinados. Um deles foi morto ao reagir a uma ofensa racista de um policial militar aposentado durante uma discussão em um bar.

“Tive a grata satisfação de ver essa pessoa ser responsabilizada criminalmente. Você percebe que o preconceito e o racismo não tiram só direitos, eles tiram vidas.”

“Eu percebo a importância de não levarmos em consideração as nossas convicções pessoais e trabalharmos para concretizar o direito das pessoas. Independentemente de quem elas sejam, são pessoas humanas.”

Além de “Os Sonhos de Ágatha”, ela publicou em 2018 a obra “Ministério Público e Violência Contra a Mulher”, sua tese de doutorado concluída no mesmo ano também pela PUC-SP.

Em busca de novos desafios na carreira, após trabalhar como procuradora, resolveu se candidatar para a vaga de desembargadora, um sonho de seu pai. Ela conta que considerou o processo de lista tranquilo, embora tenha enfrentado resistência por sua área de atuação.

“Houve uma polarização no Brasil muito grande e algumas pessoas entendem a pauta de direitos humanos como de esquerda, quando na verdade é uma pauta da humanidade. Não podemos falar em Estado democrático de Direito se não tiver inclusão, diversidade e pluralidade.”

Antes de ser promovida ao tribunal em 2022, em vaga destinada ao Ministério Público, Jaceguara recebeu homenagens por sua atuação em prol dos direitos humanos, como o Diploma Bertha Lutz, em 2019, no Senado, e a medalha Mérito Legislativo, em 2021, na Câmara dos Deputados.

A ABMCJ (Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica) e a Unegro (União de Negros pela Igualdade) têm manifestado apoio à indicação dela ao STF (Supremo Tribunal Federal), assunto sobre o qual prefere não falar.

Única desembargadora negra no TJ-MS, ela afirma que todos os espaços políticos ganham quando há diversidade, algo que também espera no STF.

“Ter uma pessoa negra, uma mulher negra, seria algo que viria enriquecer sobremaneira a visão humana do Supremo Tribunal Federal”, diz.

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RAIO-X | JACEGUARA DANTAS DA SILVA, 61

É desembargadora do TJ-MS (Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul), onde dirige a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar e é ouvidora auxiliar regional da mulher no centro-oeste designada pela Presidência do CNJ. Integrante da AMB Mulheres, é mestre em direito do Estado e em direito constitucional pela PUC-SP e autora dos livros “Ministério Público e Violência Contra a Mulher” (Lumen Juris, 2018) e “Os Sonhos de Ágatha” (Eureka infantil, 2022).

GÉSSICA BRANDINO / Folhapress

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