RIBEIRÃO PRETO, SP (FOLHAPRESS) – O coração anatômico dos livros de medicina lembra um punho fechado e, à primeira vista, tem muito pouco em comum com o ícone tradicional que rabiscamos desde pequenos. Um estudo italiano, porém, afirma que, “de alguma forma, o símbolo do coração reflete os contornos anatômicos reais.”
Em artigo publicado no periódico científico Journal of Visual Communication in Medicine, cientistas italianos revelam que a representação pode ter sido elaborada a partir de algum estudo rudimentar do corpo humano.
“As duas curvas superiores do símbolo indicam a presença de dois lados do órgão real, de alguma forma respondendo a fatos anatômicos”, afirmam os autores.
Gabriele Fragasso e Mauro Carlin, do departamento de cardiologia intervencional do Instituto Científico San Raffaele, de Milão (Itália) apontam que é possível “ver” o formato popularizado no coração “real” fazendo uma imagem contrastada do órgão ou um molde a partir de plástico injetado.
A primeira possibilidade aparece quando é feita uma injeção simultânea de corante de contraste nas duas artérias coronárias, o que teria gerado “evidência de uma imagem” similar ou que se sobrepõe aos traços do “ícone do coração”.
No caso da moldagem, o princípio é o mesmo, mas consiste em injetar substâncias plásticas na aorta de coração removido. O resultado são modelos de circulação coronária que assemelham-se ao formato popular de desenho do coração.
A hipótese dos autores para os dois casos é que cientistas anteriores ou até mesmo artistas possam ter obtido forma semelhante em seus estudos do sistema cardíaco, “provavelmente injetando gesso nas artérias coronárias durante autópsias e depois transpondo a estrutura obtida para desenhos”.
Segundo a pesquisa, os primeiros estudos de padrões anatômicos do sistema arterial coronariano foram investigados e relatados através de injeção post-mortem (pós-morte), pelas quais foram feitos moldes em meados da década de 1950.
Antes disso, porém, ainda na Idade Antiga, já existiam relatos de estudiosos de anatomia que poderiam ter explorado o processo com materiais mais rudimentares.
“É, portanto, provável que a forma icônica replicada do coração possa ser derivada da observação de órgãos cardíacos reais, provavelmente auxiliadas por moldes de gesso após a injeção nos óstios [locais na parede do coração onde desembocam os vasos] coronários”, destacam os pesquisadores.
O artigo ressalta que não há registros históricos que comprovem a existência de modelos anatômicos de artérias coronárias antes daqueles publicados na década de 1950 e, por essa razão, não se pode afirmar que foi exatamente essa a origem do símbolo. No entanto, parece ser a hipótese mais plausível, afirmam os autores. Futuras pesquisas podem confirmar a ideia.
Em 2009, o cientista Rami Khouzam, da divisão de doenças cardiovasculares do Centro do Coração de Farmington, nos Estados Unidos, também defendeu a ideia da forma icônica do coração estar presente órgão cardíaco.
Segundo o autor, a cintilografia nuclear (espécie de exame de imagem) de um paciente de 66 anos com doença arterial coronariana revelou que “os cortes de eixo curto da varredura nuclear representavam claramente o formato simbólico do coração”, embora não houvesse uma explicação científica para o fato.
O CORAÇÃO E O AMOR
A relação entre o coração e os sentimentos amorosos é geralmente atribuída aos filósofos gregos, que consideravam o órgão como um centro de nossas emoções mais fortes, incluindo o amor. A hipótese “cardiocêntrica” de Aristóteles, que colocavam o órgão como centro do corpo humano, influenciou todas as teorias que viriam a seguir sobre o tema.
Os cientistas italianos, porém, atribuem essas conexões à “ativação emocionalmente induzida do sistema simpático-adrenal”, que provoca respostas fisiológicas da frequência cardíaca, como aumento e queda da pressão arterial, aceleração dos batimentos, entre outras reações.
Outras discussões exploram, por sua vez, aspectos sociológicos e antropológicos do assunto. Em fevereiro deste ano, por exemplo, um levantamento feito a partir do acervo de objetos históricos dos museus da Universidade Harvard, feito pela pesquisadora Vivian Jin, conseguiu rastrear o desenho icônico do coração até a Roma Antiga.
“O símbolo em forma de coração persiste como um motivo onipresente, transcendendo os contextos contemporâneos e históricos. No entanto, seu significado simbólico é diferente do emoji familiar que usamos em nossas comunicações diárias ou do botão de ‘curtir’ em aplicativos como Instagram e Spotify”, diz a autora.
A associação do formato do coração com amor e carinho evoluiu, assim, séculos depois da era romana, afirma Jin.
Estudos anatômicos do coração por autópsias datam do Egito Antigo, e eram conduzidos por médicos, embora o ícone popular tenha sido encontrado antes disso, em registros de povos antigos como os Cro-magnon (que viveram na Europa há 30 mil anos), como aponta Khouzam.
Na Idade Média, a arte religiosa voltou a incluir o símbolo por sua carga emocional, e ele voltou a ser observado do ponto de vista científico durante a idade renascentista, onde a anatomia humana era estudado por artistas como Andreas Vesalius, Leonardo da Vinci e Michelangelo.
Segundo o cardiologista brasileiro Paulo Prates, que também discutiu o coração como representação simbólica em um artigo na revista científica Histórias, Ciências, Saúde Manguinhos, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), o interesse na origem do ícone remete aos valores associados ao órgão.
“Muito antes do papel do coração no bombeamento do sangue ser descoberto, o órgão era visto como o centro da vida, da coragem e da razão. É o mais universal dos símbolos”, diz Prates.
Alguns livros, como “The Heart: Its History, Its Symbolism, Its Iconography, and Its Diseases”, de N. Boyadjian (discutido em artigo ma The Lancet), e “The Shape of the Heart”, por Pierre J. Vinken, cuja resenha foi publicada pela revista Nature, mapeiam e discutem a origem da forma e do significado emocional atribuído ao coração pela humanidade.
Dentre os temas debatidos estão a possibilidade do desenho popular ter sido inspirado no formato de folhas de plantas extintas ou na forma feminina até sua complexa representação de ideais filosóficos, religiosos e artísticos.
DANIELLE CASTRO / Folhapress