Diálogos entre arte negra brasileira e americana expõem faces da diáspora

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um Cristo negro está de braços abertos numa cruz cujas pontas delineiam a curvatura de um machado. Sem nada que a cubra, sua genitália está à mostra, erguida. Também não se veem cabelos longos, mas fios curtos e crespos e uma barba longa, que se destacam num halo solar.

As misturas de símbolos de religiões de matriz africana e do cânone do cristianismo são o cerne do contraste desta obra de Abdias do Nascimento, que não à toa tem dois títulos —”Xangô Crucificado ou O Martírio de Malcom X”.

A tela desse pioneiro do ativismo negro representa bem os diálogos da exposição “Ancestral: Afro-Américas”, que celebra as ligações entre a arte afro-brasileira e afro-americana. São 132 obras de 73 artistas, explorando diferentes vivências e contextos reunidas no Museu de Arte Brasileira, o MAB, da Fundação Armando Alvares Penteado, a FAAP, até 26 de janeiro de 2025.

Ao lado de destaques da arte americana, como Betye Saar, Kara Walker e o jamaicano Nari Ward, estão artistas populares brasileiros como Heitor dos Prazeres, Bispo do Rosário e Mestre Didi.

Questões como imigração, religião, desigualdade social, gênero, memória e identidade, se desdobram nas entrelinhas das obras de diferente períodos. No caso, a pintura de Nascimento, também fundador do Teatro Experimental do Negro, é de 1969, feita enquanto ele viveu exilado, de 1968 a 1981, nos Estados Unidos e na Nigéria.

O tema do Cristo negro foi retomado por LeRoi Johnson, de Nova York, que pintou “A Crucificação” em 1996, incluindo símbolos da arte africana e das relações com a natureza. Posteriormente, LeRoi doou sua tela à fundação de Nascimento, Ipeafro, em 2004.

A mostra é um testemunho das semelhanças e diferenças que marcam essa duas populações. A curadoria conjunta é assinada pela brasileira Ana Beatriz Almeida, historiadora da arte e artista visual, e a americana Lauren Haynes, curadora-chefe do centro artístico Governors Island, ao sul de Manhattan.

A curadoria propõe três eixos temáticos: “Espaço”, “Corpo” e, entre os dois, “Sonhos”. Haynes destaca, em “Sonhos”, o uso de materiais com conotações específicas –especialmente para pessoas negras.

É o caso de Nari Ward. Sua obra “Untitled (Xancestral)” remete simultaneamente ao cosmograma da religião Bakongo e à bandeira brasileira, com molas de colchões, açúcar, cachaça, algodão e terra, coletada no Brasil.

O artista jamaicano, que costuma trabalhar com materiais descartados, montou sua obra direto no museu. “É um trabalho para ser exibido aqui e agora. Mescla as práticas e espaços artísticos, conversa com inúmeros outros trabalhos presentes”, afirma Haynes.

Segundo Almeida, a montagem –com “Sonhos” ao centro– foi inspirada pelo lugar de predominância que o onírico e espiritual ocupam nas tradições africanas. “O Ocidente é criado pela ética e estética. Já nos povos não ocidentais, temos ética, estética e transcendental. ‘Ancestral’ é uma forma de pensar a arte afro-brasileira e afro-americana ao recriar essa dimensão inexistente”, diz.

Nas últimas décadas, multiplicaram-se os museus e mostras dedicadas à arte negra. Mas a falta de diversidade no cânone da história da arte é ensurdecedora. Simone Leigh, que expõe “Las Meninas 2” (2019), foi a primeira afro-americana a representar os Estados Unidos na Bienal de Veneza, principal evento do mundo da arte. O ano era 2022.

“O objetivo é olhar algo negligenciado durante todos esses anos, justamente o que as duas culturas têm em comum: são as duas maiores diásporas africanas do mundo, que ocorrem no mesmo contexto histórico, e ambas as populações carregam uma ancestralidade profunda que se expressa abertamente na cultura contemporânea”, afirma o diretor criativo de “Ancestral”, Marcello Dantas.

Um dos artistas é Mel Edwards, que teve mostra individual no Masp dedicada às suas esculturas e instalações em 2018, ano que o museu expôs histórias afro-atlânticas por meio das artes. Edwards expõe desde os anos 1960 –quando ainda vigoravam leis segregacionistas em seu país–, e seu trabalho é permeado por temas de protesto e justiça social. Sua obra na mostra, “Coco Variations SP”, de 2019, é inspirada pelas memórias que tinha de sua avó.

Quanto às obras contemporâneas, algumas são marcadas pelo uso da tecnologia. É o caso de “Radiola da Promessa”, idealizada pela maranhense Gê Viana, que explora as relações entre música, território e religião. Uma colagem com radiolas, litogravuras de arquivo do período colonial, fumaça e música reggae ao fundo remete às memórias de Viana das radiolas e terreiros de Minas.

A artista considera a radiola uma tecnologia negra, e o próprio reggae –presente no Norte e no Nordeste do Brasil assim como na Flórida e no Caribe, devido às mesmas ondas de rádio– conecta essas populações de longe.

“Ancestral: Afro-Américas” é uma iniciativa da FAAP e da Embaixada e Consulados dos Estados Unidos, em celebração aos 200 anos de amizade diplomática do Brasil com o país. “Queremos mostrar os valores compartilhados entre os países: a importância da herança da escravidão e o impacto das pessoas negras na formação dos dois países”, diz Elizabeth Detmeister, Conselheira de Assuntos de Cultura, Comunicação e Imprensa da Embaixada dos Estados Unidos.

Durante a temporada da mostra em São Paulo, 450 estudantes de escolas do estado visitarão “Ancestral” com guias, para reforçar a dimensão educacional. Depois, a exposição passará por Belo Horizonte, Salvador, Rio de Janeiro e Brasília.

ANCESTRAL: AFRO-AMÉRICAS [ESTADOS UNIDOS E BRASIL]

– Quando Ter. a dom., das 10h às 18h. 29/10 a 16/01

– Preço Entrada gratuita

– Link: https://www.faap.br/mab/exposicao/ancestral-afro-americas/

– Onde MAB FAAP – r. Alagoas, 1903

LARA PAIVA / Folhapress

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