MONTEVIDÉU, URUGUAI (FOLHAPRESS) – “Algo mais a nos dizer, presidente?”. “Não, vocês já me espremeram como se faz com as laranjas”, responde sorrindo Luis Lacalle Pou, 51, em seu escritório. O presidente do Uruguai muito raramente concede entrevistas extensas.
Enquanto toma seu mate com Montevidéu e o rio da Prata ao fundo, ele recebe a reportagem dois dias após o primeiro turno das eleições que definirão seu sucessor. “Por que aceitou a entrevista agora?”. “Não sei, sempre priorizei falar apenas quando tenho o que dizer.”
Calculando cada palavra que empregará ao responder nas vezes em que é questionado sobre a conduta de outros presidentes, Lacalle Pou fala sobre a relação com o Brasil, sobre o Mercosul e a Venezuela.
Do tradicional Partido Nacional, de centro-direita, ele rompeu uma sequência de 15 anos de governos de esquerda no Uruguai ao assumir o cargo em 2020. A direita uruguaia destoa de muitas outras direitas regionais. “Qual a receita? É que há discussões que já não se fazem, como a falsa dicotomia tuiteira entre o Estado e o livre mercado.”
Lacalle Pou deixará o cargo em março de 2025, quando o retorno da democracia completa 40 anos no país. Pela Constituição, não poderia concorrer a reeleição consecutiva. Voltará a tentar o cargo em 2029?
“O que eu quero é trocar poder por autoridade. O poder é formal. A autoridade é moral. E isso é um vínculo muito bonito com as pessoas.”
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PERGUNTA – Interlocutores dos governos dizem que, em três horas com Lula, o senhor fez mais do que em três anos com Bolsonaro.
LUIS LACALLE POU – Eu me relaciono com os interesses nacionais. Não importa a ideologia do outro presidente, importa a consonância que haja no que nosso país precisa. Com o presidente Bolsonaro, nos relacionamos durante uma crise [a pandemia de Covid].
P – Quando o senhor agiu de maneira muito distinta à de Bolsonaro.
LLP – Sim, lidamos à uruguaia, confiando nos uruguaios, não gosto de opinar sobre o que os outros fizeram em outro país.
Tivemos acordo em temas internacionais. O ministro Paulo Guedes [Economia] e o próprio Bolsonaro concordavam que o Uruguai podia assinar acordos bilaterais com outros países, como com a China.
Com o presidente Lula tive a oportunidade de ter um vínculo no início de seu governo, o que é determinante. Falamos, basicamente, de cinco temas. Dois eram sobre Uruguai com o Mercosul e com a China, e três eram pontuais. Neles, Lula não só concordou como agiu.
A binacionalidade do aeroporto de Rivera, a construção de uma nova ponte sobre o rio Jaguarão, e o canal de São Gonçalo, que nos permite sair por um porto brasileiro. Alguém dirá que é perda de soberania não sair pelo porto de Montevidéu e sair pelo Rio Grande do Sul. Soberania é ser competitivo no mundo.
Com o presidente Lula tive um bom vínculo. E para mim os vínculos se constroem no cumprimento do acordado reciprocamente. Ideologicamente o presidente Lula e eu não coincidimos em nada, mas, com o Uruguai, ele cumpriu.
P – Os presidentes dos vizinhos do Uruguai, Javier Milei e Lula, não se falam. Esse tipo de relação gera danos à região?
LLP – Motivos para discutir sobram no mundo. Uma das funções vitais de um chefe de Estado é unir seu país e, depois, tentar unir a região e o mundo. Se um político não tem como princípio base a união, não entendeu a vocação de serviço. E acredite que me surpreende quando vejo muitos líderes mundiais que fazem da divisão um instrumento político.
P – É o que está fazendo Milei.
LLP – Eu não quero colocar nomes. Há estratégias e táticas. [Essa] não é a minha. Meu dever como Presidente da República era representar a maior quantidade de uruguaios.
Se ideologicamente não posso fazer isso, pelo menos há o fator de unidade, mesmo na discrepância. Agora, para fazer isso é preciso ter muita segurança em si mesmo, no que está fazendo e no projeto. Quando alguém sente fraqueza, levanta muros e não constrói pontes.
P – Algumas direitas na região estão mais radicalizadas. No Uruguai a direita tradicional segue democrática. O que teria a ensinar?
LLP – Como está a esquerda, não? O radicalismo e a divisão não têm lado ideológico. Os populismos também não têm. No Uruguai você não vai encontrar muita gente que diga que é de direita. E de fato a coalizão que formamos é de centro-direita e de centro-esquerda. Qual é a receita uruguaia? É que há discussões que já não se fazem.
P – Por exemplo?
LLP – A falsa dicotomia tuiteira entre o Estado e o livre mercado. Empresários e empreendedores se beneficiam de políticas de Estado. Não há uma luta ideológica entre o livre mercado e o Estado. Ao contrário, eles têm uma complementaridade. A fortaleza do Estado uruguaio é indiscutível. Fortaleza que não necessariamente significa tamanho.
Quem hoje em dia diria que não deve haver uma educação pública forte? Que não deve haver uma saúde pública forte? Essa discussão é totalmente teórica e não se atreve a tocar a realidade.
P – Falamos com a campanha de Yamandú Orsi [candidato da Frente Ampla à Presidência], e o plano deles é frear o acordo com a China.
LLP – É que hoje já está parado por ação do Brasil e da Argentina. Todos sabem que tanto Brasil quanto Argentina haviam falado com a China, feito todas as movimentações diplomáticas para que o Uruguai não pudesse assinar um acordo bilateral.
P – O chanceler Mauro Vieira disse que isso acabaria com o Mercosul.
LLP – Sim, e eu não concordo. Acho que o Brasil tem uma concepção que carrega, que é a supremacia na região. De alguma forma, não quer que um sócio do Mercosul tenha a bilateralidade com a China.
Agora, hoje no Brasil existe um fenômeno interessante que é o crescimento econômico e de peso específico do Mato Grosso. Antes as indústrias paulistas tinham mais peso, hoje o Mato Grosso o tem. Em algum momento vão começar a ter sua forte pressão natural para que a China compre sem tarifas. Acho que estamos em um momento interessante em que os tempos dos países não são os mesmos. Que o Uruguai comece e depois que os outros sócios se juntem.
P – No Mercosul o governo de Milei tem bloqueado debates de gênero, justiça social, Agenda 2030. Como vê essa agenda ideológica?
LLP – Sempre me neguei a participar de blocos ideologizados. Se essa é a nossa visão, para que ideologizar um Mercosul que já tem suas dificuldades sem estar direcionado para avançar? O que ganhamos? Desunião. Não parece muito lógico. Pelo menos se alguém entende a função política como a criação e não a destruição.
P – Os diplomatas uruguaios elevaram o tom contra o que tem acontecido na Venezuela. Como analisa o que acontece na ditadura de Maduro e a negociação natimorta de Colômbia e Brasil?
LLP – Para dançar é preciso dois. Uma das partes não quer dançar. E é Maduro. Maduro não tem nenhuma intenção de sair do poder. Suas práticas antidemocráticas e de violação dos direitos humanos se estendem por tanto tempo e para tanta gente que se fecham todas as portas de saída. Então, como podem terminar? Com uma revolução interna, que até o momento parece não haver, porque na minha visão eles [o regime] estão intimamente vinculados ao lado empresarial.
Acho que falta mais compromisso de alguns países. É óbvio que o peso relativo dos Estados Unidos não é o mesmo que o peso relativo do Uruguai. Acho que os EUA têm muito mais a fazer.
P – Depois de cinco anos de governo, o sr. sai com uma aprovação muito boa. Tem arrependimentos?
LLP – Se me pergunta se estou satisfeito? Não. A conformidade não deve ser uma das sensações de um governante. Realmente governei para todos. Enquanto houver um com fome, um sem casa, um sem trabalho, um que não tenha acesso à saúde, não posso estar satisfeito.
Claro que gostaria de ter feito um pouco diferente, mas a política é a arte do possível. Quando me olho no espelho, não tenho que olhar para o outro lado. Quando apoio a orelha no travesseiro, não fico desconfortável. Para mim, são duas coisas determinantes.
Atuamos muito no povoado pequeno, que sempre foi de alguma forma relegado. A descentralização é também um elemento de justiça social: aproximar o Estado forte das comunidades menores.
P – Nestes cinco anos tivemos alguns casos de corrupção de pessoas muito próximas ao sr. Sua imagem pessoal como líder não parece ser sido afetada. Qual o balanço?
LLP – Não há um membro do governo processado ou condenado. Quando existiam situações equivocadas, o governo foi contundente. Retirou de seus cargos, tomou as medidas correspondentes. Não dou como certa a afirmação de que houve corrupção. Incompatibilidades com a lei, sei que ocorreram, e agimos contra elas.
P – O ex-presidente Pepe Mujica, de esquerda, não está bem de saúde. Alguma mensagem sobre a relação com ele?
LLP – Claramente não temos a mesma visão sobre uma grande quantidade de coisas do país e do ser humano. Mas há respeito a um ex-presidente da República do meu país.
Quando Lula assumiu, o presidente Mujica poderia ter ido sozinho a Brasília, porque ele tem um vínculo com Lula, mas fomos juntos, e foi um bom gesto que faz bem ao país. Depois, quando estávamos lado a lado nos 50 anos do golpe de Estado.
A palavra é união. E isso tem sido cumprido quase sempre ou sempre, pelo menos na democracia. No Uruguai, o sangue não chega ao rio. Não quer dizer que não haja sangue. Mas não vamos até as últimas consequências, há um freio que, mais que político, é um freio popular.
P – Voltará a tentar a Presidência em 2029?
LLP – Eu sou um ser político. Não entendo minha vida afastado da política. Há sentimentos muito humanos que é preciso saber domar, que é o ego, a ânsia de poder.
Alguém pode garantir que eu em 2029 vou querer isso? Eu não posso garantir. Só posso garantir que vou estar perto das pessoas e da política porque me faz sentir uma pessoa melhor.
Se você me dissesse o que eu quero, quase como um segredo e confissão: trocar poder por autoridade. O poder é formal. Te é dado pela população, quando te elege, pela Constituição e pelas leis. A autoridade é intelectual, afetiva e moral, não há Constituição nem lei que te dê. E isso é um vínculo muito bonito com as pessoas.
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Raio-X
Luis Lacalle Pou, 51
Presidente do Uruguai desde março de 2020, é advogado e membro do Partido Nacional. Filho do ex-presidente Luis Alberto Lacalle e da senadora Julia Pou, vem de uma tradicional família política. Durante seu mandato, destacou-se na resposta à pandemia.
MAYARA PAIXÃO / Folhapress